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Movimentos identitários, as eleições e o bolsonarismo

Em nosso último artigo falamos sobre a política identitária e a satani­zação da maioria que dela venha discordar ou não participar de alguma forma. Continuamos, hoje, a refletir sobre esta temática com base no artigo de Wilson Gomes publicado na revista CULT. Segundo ele, cada um vota­calculando perdas e ganhos. Para quem é homem hétero, cisgênero, branco e cristão, a esquerda identitária oferece apenas uma culpa e um conjunto de dívidas e obrigações daí decorrentes. Ora, ninguém gosta de se sentir culpado nem de assumir responsabilidade por pecados, principalmente quando julga que não os cometeu.

Ninguém gosta também, de ouvir o tempo todo que tudo em sua vida é resultado de privilégios, principalmente quando olha em volta e vê que tem menos do que mereceria ter – ou nem se considera propriamente uma pessoa desprovida de méritos, esforços e sacrifícios, que não tenha que ralar todo dia, que não tenha que enfrentar desvantagens e dificulda­des. Mas a esquerda identitária basicamente diz para esse sujeito que sua vida se resume a privilégios, que ele é parte da injustiça social e que ele tem que se acostumar a perder para que os outros possam, enfim, ganhar alguma coisa.

Para Gomes, “este processo atribui a todos os oprimidos os dividendos da superioridade moral da sua posição, enquanto cobra de todos os indivíduos da categoria oficialmente opressora o pagamento das dívidas que é dos opres­sores”. Assim, todo homem de algum modo pode responder pelo machis­mo, independentemente da sua responsabilidade individual e compartilha­mento das ideias machistas. Ou todo branco poderá ser responsabilizado pelo racismo, independente das suas posições pessoais sobre a matéria. Na retórica e na prática, frequentemente, já nem se sabe ao certo se o inimigo a ser derrotado é o machismo, o racismo, a homofobia ou o homem, branco, heterossexual e cisgênero.

Nas eleições, a esquerda identitária precisa decidir se quer ganhá-las ou se quer simplesmente vencer o campeonato da superioridade moral. Superioridade moral é importante, mas ter razão não é superior a ter votos se o propósito é ganhar as eleições. De fato, na democracia você precisa ter a maioria do seu lado para governar. Um lado não precisa necessariamente ser melhor que o outro, mas precisa ser maior. E o seu lado não se torna maior apenas porque você acredita ter superioridade moral. A esquerda tem enorme dificuldade de entender isso. Com isso, fala cada vez mais para si mesma e cada vez menos com os que estão fora dos seus muros.

O bolsonarismo se aproveitou disso e continua se aproveitando. Vou dar um exemplo. Indagado sobre políticas de compensações para negros em função do passado escravocrata do país, Bolsonaro reagiu prontamente: “Eu nunca escravizei ninguém”. Os bolsonaristas vibraram pelos grupos de WhatsApp. “Essa gente fascista saiu do armário”, disse a esquerda identi­tária. Na verdade, ali se registrava mais uma vez o fato de que não existe qualquer “torrão de açúcar” para este público no discurso identitário quan­do ele se torna discurso eleitoral. O voto precisa de tática e estratégia.

Só discordamos de Wilson Gomes quando deixa a entender que o bolsonarismo se reduz a uma reação à política identitária. Ele é também resultado de várias outras vertentes: da negação da política, do antipetismo, do fundamentalismo evangélico etc. Estrategicamente a direita conserva­dora oferece à maioria, paradoxalmente, uma oportunidade emancipatória: “Você não escravizou ninguém, a culpa não é sua, não abra mão dos seus direitos para pagar uma dívida que você não contraiu”. O bolsonarismo também precisava de inimigos a serem satanizados para construir sua própria identidade e um deles foi a esquerda identitária.

A grande contribuição de Wilson Gomes é incluir, dentre as táticas destinadas ao fracasso, a satanização da maioria para explicar parte do sucesso eleitoral da onda ultraconservadora.

Afinal, a democracia liberal é um governo de maiorias e não de superioridade moral. Pisar nos pés da maioria e ainda pretender vencer eleições não parece, portanto, uma ideia promissora. A mim também não. “Ainda mais se, ao final, a satanização do outro, além de taticamente ineficaz, não possui nenhuma dimensão essencial, moralmente superior ou democraticamente justificável, da luta por direitos, estima social, igualdade e respeito”, conclui Wilson Gomes.

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