“Fausto”, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, é um poema trágico, dividido em duas partes, redigido como uma peça de teatro, com diálogos rimados, pensado mais para ser lido do que para ser encenado. Considerado uma das grandes obras-primas da literatura alemã, teve sua primeira versão composta em 1775, bem como, um novo esboço feito em 1791 e sua versão definitiva escrita e publicada por Goethe em 1808, sob o título de Fausto, uma tragédia. A ação gira em torno de uma aposta que Mefistófeles, personagem medieval, que simboliza o mal, faz uma aposta com Deus, dizendo que poderá conquistar a alma de Fausto – um favorito de Deus -, um sábio que tenta aprender tudo que pode ser conhecido. Discorrendo, a seguir, diversas invenções da modernidade, com Fausto e Mefistófeles já convivendo no cotidiano, a obra nos mostra, entre outros, como nos iludimos quando pensamos que tudo podemos saber.
A releitura e “atualização” da obra, por Marcus Mazzari, opta por tratar do episódio que dá título ao livro. Nela, Fausto, no momento em que se regozija com as façanhas militares que o levaram a tornar-se, com a “ajuda” de Mefistófeles, governante da região costeira de um grande império, busca dedicar-se a uma construção de diques e aterros que levará seu domínio para o mar. Entretanto, no caminho dessa construção, encontra-se a idílica cabana do casal Filemon e Baucis, os quais, não convencidos por Fausto do grande feito que será o empreendimento, acabam por sofrer nas mãos de Mefistófeles a única forma de serem retirados dali: sua propriedade é incendiada, dela restando apenas as duas tílias, árvores milenares que ardem junto à cabana. Este episódio evoca uma cena clássica das “Metamorfoses”, de Ovídio, na qual os pastores Filemon e Baucis, perdem suas terras por capricho divino, numa inundação, mas são imortalizados, em troca, ao serem transformados no par de árvores tílias. Em Mazzari, fica, então, a observação da destrutibilidade inerente ao mundo moderno, algo similar ao que a humanidade assiste acontecer, atualmente, com a Amazônia, os Oceanos e o degelo dos polos, em nome do progresso, ou como consequência deste. Nas palavras do autor:
“Em abril de 1827, ao receber algumas amostras de litografias feitas por Eugène Delacroix para uma edição francesa do Fausto I, Goethe exprimiu em carta sua alegria em ver como o ‘velho fermento’ fáustico atuava – e continuaria sempre a atuar – em ‘novos bolos’ pictóricos (as próprias ilustrações de Delacroix ou ainda, entre inúmeros exemplos posteriores, Max Beckmann), musicais (Gounod, Liszt, Boito etc.), literários (Fernando Pessoa, Bulgákov, Thomas Mann, Guimarães Rosa etc.), filosóficos, exegéticos etc. Alguns grandes leitores do drama goethiano, entre os quais Adorno, observaram que o ‘Fausto’ está entre aqueles textos ‘profanos’ que, ao longo do tempo, vêm sendo tratados como ‘sagrados’, pois suas imagens, de leitura tão difícil, são interrogadas intensa e continuamente, graças às potencialidades poéticas trabalhadas pelo velho dramaturgo, as quais vão se revelando às sucessivas gerações de leitores”.
“Esta ‘Dupla Noite das Tílias’ é fruto de um longo embate com o texto goethiano, interpretado como uma grande obra… perspectiva crítica que subjaz a interpretação das devastações ecológicas (como o da floresta amazônica, bioma que Goethe conhecia muito bem através de seu amigo Carl F. P. von Martius) que vêm ocorrendo há muito tempo em nosso país, mas que se intensificaram em escala criminosa com o governo, catastrófico em todos os âmbitos e em todos os sentidos, a que estamos submetidos (mas não subjugados)”.
Natural de São Carlos-SP, Marcus Vinicius Mazzari nasceu, em 1958. Graduado em Letras, pela USP, é especialista em literatura alemã, tendo traduzido, entre outros, textos de Adelbert von Chamisso, Bertolt Brecht, Gottfried Keller, Günter Grass, Heinrich Heine, Jeremias Gotthelf, J. W. Goethe, Karl Marx, Thomas Mann e Walter Benjamin.