Com o estabelecimento de protocolos de prevenção contra a covid-19, funerais de todo o país passaram por modificações, de modo que parte das pessoas em luto sente que não se despede propriamente de seus entes queridos. Para conservar a memória das vítimas da doença, voluntários de todos os cantos do Brasil se juntaram para lançar o projeto Inumeráveis (inumeraveis.com.br), por iniciativa do artista Edson Pavoni.
O projeto destaca que durante pandemias, a tendência é que as pessoas virem números, estatísticas. “Estatísticas são necessárias. Mas palavras também. Se nem todas as vítimas tiveram a chance de ter um velório ou de se despedir de seus entes queridos, queremos que tenham ao menos a chance de terem a sua história contada.”
“Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”, diz o site, que reúne centenas de homenagens. O grupo salienta ainda que visa “reverter a lógica fria pela qual a pandemia está sendo tratada no país” e que “por trás dos números em crescimento, de falas e atitudes irresponsáveis de governantes, estão histórias de milhares de brasileiros”.
Sepultamento em tempos de covid-19 exige mudança de rituais
Diante da pandemia do novo coronavírus, dezenas de famílias se viram obrigadas a passar pelo processo de morte e luto de um ente querido à distância. Sem velórios ou com um número reduzido de pessoas e de tempo, com caixões lacrados, os enterros em tempos de covid-19 exigiram mudanças como participação de parentes via chamada de vídeo, rituais religiosos pela internet ou mesmo cerimônias solitárias.
“Os rituais diante da morte são muito importantes, porque regularizam as experiências, fornecem um lugar seguro, desde um lugar físico, até um lugar afetivo importante para expressão das emoções, para que as pessoas possam enfrentar este momento juntas. Com a covid -19, esses rituais, que tinham função apaziguadora, organizadora, não estão acontecendo, e isso representa um risco para o luto complicado após a morte, porque não foram feitas as despedidas” afirma a coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto da PUC-SP, professora Maria Helena Pereira Franco.
A docente prevê um tempo bastante difícil no que diz respeito à saúde mental e o luto. “As pessoas que apresentam um luto complicado vão ter algumas demandas que precisarão ser atendidas, como por exemplo, buscarão mais os serviços de saúde, pois ficarão mais atentas a algum sintoma, terão mudanças no sistema imunológico, ficando mais suscetíveis a adoecer”.
Ela explica que haverá impacto também no âmbito social, na relação com grupos maiores, nas relações familiares. “Inclusive, por não terem a oportunidade de se despedir, podem ficar com a expectativa de que aquela morte não aconteceu, porque não tiveram a concretude da morte que os rituais proporcionam”. Para Maria Helena, é importante pensar em alternativas e adaptações a esta falta, justamente porque é importante que o luto seja feito, nem que seja uma reunião online com amigos e familiares da pessoa falecida.
Velórios em Ribeirão Preto em horários alterados
Com o decreto 69/2020, que prevê recomendações e determinações sobre as medidas preventivas e repreensivas ao enfrentamento da covid-19, assinado pelo prefeito Duarte Nogueira, no dia 19 de março, os velórios de Ribeirão Preto tiveram alterados os seus funcionamentos.
A quantidade foi limitada em 10 pessoas e o horário de funcionamento passou a ser das 7h às 19h. Caso não ocorra o sepultamento até às 17h, os velórios deverão ser fechados e reabertos somente no dia seguinte. Na prática, as famílias estão realizando velórios rápidos, em torno de duas horas de duração.
Homenagens
“Adalberto Álvares Almeida. 1966 – 2020. O carnaval em pessoa”.
“Seisho Inamine. 1950 – 2020. Pai e avô dedicado, de poucas palavras, mas de muito afeto nos pequenos cuidados diários”.
“Ademir Castro Pinto. 1950 – 2020. Entre peixes e pequenos presentes, suas demonstrações de afeto que jamais serão esquecidas”.
“Magali Garcia. 1974 – 2020. A vida é feita para ser vivida. Onde chegava, sua gargalhada era notada. Policial da Polícia Militar de São Paulo, era linda, amava a vida e adorava o que fazia”.
“Lucila Santana Alves. 1943 – 2020. Batatinha gostava de conversar com suas plantas. Viúva, criou os 9 filhos graças ao trabalho na roça”.
“Talita Dentello. 1984 – 2020. A madrinha que todos queriam em seu casamento e dona de uma luz que acolheu quem conviveu ao seu lado”.
Histórias e relatos de pessoas próximas, assim são as homenagens às vítimas da covid-19 de várias idades, profissões e de várias regiões do país que estão no site Inumeráveis.
Na página principal há o nome, idade e uma frase. Ao clicar no nome, abre-se outra página onde consta depoimentos emocionantes.
Por exemplo, sobre o médico endocrinologista Maurício Barbosa Lima, descobre-se que era visto como uma pessoa disponível e que fez a diferença por onde passou. Já a paraense Maria José Assunção, que teve a vida interrompida pela doença aos 64 anos de idade, é descrita como uma mulher guerreira e que deixará um legado de amor e solidariedade.
Como homenagear
Para participar, familiares das vítimas podem enviar um relato à equipe do projeto, mediante o preenchimento de um formulário ou por áudio de WhatsApp (há um link no site).
Jornalistas, estudantes de jornalismo, escritores, contadores de histórias e pessoas em geral que tenham habilidade com escrita também podem colaborar, redigindo textos a partir de entrevistas dos familiares das vítimas ou de histórias já veiculadas em outras plataformas, indicando o devido crédito e link para a fonte da postagem original.