Tribuna Ribeirão
Saúde

Dependência de doações ameaça tratamento de hanseníase no país

© SMS de Mesquita/RJ

Distrito Federal, Pernambuco e São Paulo enfrentam problemas no abastecimento de remédios usados no tratamento da hanseníase – doença infecciosa crônica, causada por uma bactéria, que atinge principalmente a pele e os nervos periféricos, e cuja cura depende dos medicamentos disponíveis apenas no Sistema Único de Saúde (SUS). 

Gestores da área de saúde desses estados e do DF confirmaram à Agência Brasil que, nos últimos meses, deixaram de receber do Ministério da Saúde parte da medicação (clofazimina, dapsona e rifampicina) que uma multinacional farmacêutica doa para a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) da Organização Mundial de Saúde (OMS), responsável por repassar os produtos ao Brasil.

Segundo as secretarias de saúde e representantes de organizações ouvidos pela reportagem, o ministério informa que, em função da pandemia da covid-19, houve problemas com a produção e a distribuição dos remédios no exterior. A situação, no entanto, já estaria sendo normalizada, ainda que algumas unidades de saúde sigam desabastecidas.

Para a Agência Brasil, o Ministério da Saúde informou que o laboratório indiano que produz a dapsona está enfrentando problemas e, por isto, atrasou a entrega à Opas/OMS das cartelas contendo os dois ou três medicamentos que devem ser administrados conjuntamente conforme a classificação clínica da doença (paucibacilar ou multibacilar, respectivamente)

“Este cenário é mundial, visto que o laboratório é o único produtor no mundo de blisters [cartelas] para pacientes com hanseníase. Também devido à pandemia da covid-19, está ocorrendo atraso no envio do medicamento ao Brasil pela Opas/OMS. Por isso, as distribuições dos medicamentos aos estados ocorrem de forma racionalizada”, sustentou o ministério em nota em que garante já ter enviado aos estados e ao Distrito Federal parte dos remédios necessários.

Em Brasília, o Adolescentro atende pacientes que se tratavam no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) até a chegada do novo coronavírus ao país. Na última segunda-feira (22), servidores públicos da unidade já tinham em mãos uma lista com o contato de mais de 30 pessoas à espera dos remédios.

O nome do gari aposentado Benedito de Moraes Pimentel, 57 anos, não constava da relação. Apesar de acompanhado por uma médica do Adolescentro, ele recebe os medicamentos em outro local, próximo a sua casa, no Recanto das Emas, a cerca de 30 quilômetros do centro de Brasília. Mesmo assim, após quase um ano de tratamento – o terceiro a que se submete desde que foi diagnosticado, em 1992 -, Pimentel temia ficar sem o remédio.

“A gente ouve dizer que as pessoas não estão encontrando o remédio em alguns lugares e fica preocupado. Porque quando a gente começa o tratamento, o médico diz que não pode parar; que tem que tomar os comprimidos certinho, vir todo mês [à consulta] e apanhar as cartelas para o mês todo”, comentou Pimentel, enquanto esperava sua consulta conversando com outros pacientes que compartilhavam do mesmo receio, mas pediram à reportagem que seus nomes não fossem divulgados.

Há cerca de um mês, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) começou a receber reclamações e relatos sobre a falta dos medicamentos que compõem os esquemas de tratamento estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Segundo o coordenador nacional da entidade, Artur Custódio, a queixas vinham também de outras unidades da federação, além das três já citadas.

“A falta de medicamentos é uma questão que tem surgido em meio à pandemia. Não só de remédios relacionados à hanseníase, mas também a outras doenças. [No caso da hanseníase] Por vários motivos, como, por exemplo, falta de insumos para a fabricação dos remédios, que só são produzidos no exterior, e por problemas de distribuição”, afirmou Custódio, que também ocupa um assento no Conselho Nacional de Saúde.

Segundo ele, há algum tempo o Brasil não lidava com a falta de remédios para a hanseníase. Mesmo assim, ele considera um erro o país, que ocupa o segundo lugar em número de casos da doença, atrás apenas da Índia, depender exclusivamente de doações internacionais.

“Isto acarreta problemas que estão além da alçada do Ministério da Saúde e da sociedade brasileira. Se os estoques agora estão oficialmente mais ou menos reestabelecidos, não significa que não possa vir a faltar novamente daqui a um ou dois meses. Porque o erro é ficarmos dependendo exclusivamente de doações e não assumirmos a produção dos remédios, o que o país poderia fazer tranquilamente, principalmente, porque são medicamentos que já não têm nem mais patentes”, defendeu o coordenador do Morhan.

Controle

A falta da medicação que só é encontrada na rede pública de saúde e a consequente interrupção ou adiamento do início de tratamentos ameaçam não só o sucesso do processo terapêutico, previsto para durar de seis meses a um ano ininterruptamente (mas que, em alguns casos, pode chegar a até dois anos), como coloca em risco o controle da própria doença. Isto porque enquanto a pessoa diagnosticada não toma a primeira dose da medicação, pode continuar espalhando o bacilo através de gotículas de saliva ou secreções (a doença não é transmitida pelo toque).

“A falta destes medicamentos, mesmo que por um curto período, é um problema. Principalmente porque há contratempos recorrentes também em relação à medicação substitutiva, que deveria estar sempre à disposição”, disse o presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, Cláudio Salgado, lembrando que, em algumas poucas situações, médicos capacitados a lidar com a doença podem prescrever remédios substitutos, incluindo opções disponíveis para venda. Isto, no entanto, exige uma análise caso a caso.

Outro motivo de preocupação para especialistas é que um tratamento irregular com antibióticos acabe por aumentar a resistência da bactéria causadora da hanseníase (Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen) à medicação.

“Por isso, a questão dos estoques é importante. Hoje, oficialmente, a situação está estável outra vez, mas é preciso levar em conta que, no Brasil, os números da endemia oculta da doença ainda são muito altos. Há, no país, muita gente com hanseníase e sem diagnóstico. E todas as vezes que uma campanha de sensibilização da população é feita, muitos novos casos são identificados. Isto estoura qualquer previsão de suprimentos”, enfatizou Salgado.

Estados

Por e-mail, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal atribuiu a falta de medicamentos em alguns postos de saúde a “dificuldades enfrentadas pelo Ministério da Saúde” para distribuir os medicamentos doados. Argumentou que as dificuldades estão sendo resolvidas.

“Semana passada, a secretaria recebeu [do Ministério] uma nova remessa [dos remédios] que já está disponível em algumas unidades do Distrito Federal”, informou a assessoria da pasta ao elencar dez estabelecimentos onde a medicação podia ser encontrada na última terça-feira (23): são sete Núcleos de Logística Farmacêutica (das regiões Leste; Oeste; Sul; Sudoeste; Centro-Sul; Norte e Central); além dos hospitais Regional da Asa Norte (Hran) e Dia e mais a Farmácia Escola do Hospital Universitário de Brasília (HUB).

A própria secretaria, no entanto, lembra que os pacientes em tratamento não podem retirar medicamentos em postos onde não estejam previamente cadastrados para receber acompanhamento médico.

Em Pernambuco, o desabastecimento ocorreu entre maio e o começo de junho e, segundo a gerente de Vigilância da Tuberculose, Hanseníase e Outras Doenças Negligenciadas, da secretaria estadual de Saúde, Rosimeyre Melo, a situação já foi normalizada, embora com maior rigor em relação à distribuição para municípios que atendem pacientes por mais de dois anos.

“Com o desabastecimento, o ministério enfatizou o critério de que pacientes ativos em tratamento há mais de dois anos sejam reavaliados. Estamos traçando um plano de ação para recomendar às secretarias municipais o encaminhamento dessas pessoas à rede estadual de saúde, onde elas deverão ser avaliadas por uma junta técnica”, disse Rosimeyre.

“Em julho, o ministério deve manter esta orientação, até porque, está respaldado tecnicamente. Já estamos programando a distribuição para julho e, talvez, não tenhamos o quantitativo necessário para atender aos pacientes em tratamento prolongado por mais de dois anos. Teremos, então, que discutir tratamentos substitutivos e, talvez, a necessidade de revisão das diretrizes de tratamento”, acrescentou a gerente estadual.

Por e-mail, a Secretaria de Saúde de São Paulo se limitou a informar que a situação dos estoques já foi restabelecida e o estado está “abastecido”, com os medicamentos necessários ao tratamento da doença.

O Ministério da Saúde informou que, somente este ano, já realizou três distribuições de cartelas a serem entregues a pacientes multibacilares do Distrito Federal, totalizando 1.793 blisters para adultos e 12 infantis. Já em relação a Pernambuco, foram distribuídos, em 2020, 7.956 blisters de Multibacilar Adulto e 438 blisters de Multibacilar Infantil. A pasta não comentou o volume distribuído a São Paulo.

Queixas sobre a falta de remédios ou violações aos direitos dos pacientes podem ser encaminhadas à Defensoria Pública da União (DPU), por meio do formulário disponível na página. O movimento também mantém um serviço de teleatendimento, o TeleHansen (0800 026 2001) para tirar dúvidas e receber denúncias e reclamações.

Edição: Kleber Sampaio

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