“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigada a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo (…) Os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”. A fala em questão é do presidente da República, Jair Bolsonaro, e foi dita em entrevista coletiva no final de março, no contexto da quebra de braço entre o presidente e governadores e prefeitos, em relação às ações de combate à pandemia do novo coronavírus. Bolsonaro defendia e defende a flexibilização na quarentena, enquanto prefeitos e governadores adotavam e adotam ações restritivas.
O artigo citado por Bolsonaro é o 486 da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT (ver nesta página). Não demorou a ganhar relevância nacional. O Tribuna repercutiu com juristas e com a Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto – Acirp, o assunto, que ainda é alvo de discussão e questionamentos.
O advogado Daniel de Lucca e Castro, sócio de Brasil Salomão e Matthes Advocacia, diz que a fala do presidente teve uma “visão muito simplista ou de falta de compreensão do texto legal”.
Castro cita outro artigo da CLT, o 501, o qual “entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”.
“Aqui me parece ser quase que unânime a opinião segundo a qual a pandemia do coronavírus é, sim, um fato de força maior que autoriza a rescisão dos contratos de trabalho, e isso é até mesmo reconhecido pelo Governo Federal na MP 927. Contudo, atribuir ao Poder Público a responsabilidade pelo pagamento da indenização de que cuida o artigo 486, da CLT, requer uma análise mais profunda, a começar pela recepção, ou não, deste artigo pela Constituição Federal de 1988”, diz o especialista.
O advogado completa que é importante uma análise sobre a presença ou não de motivação do Poder Público para a edição dos decretos legislativos e outras normas editadas. “E aqui nos parece muito claro que sim, qual seja, a pandemia reconhecida e declarada pela OMS – Organização Mundial da Saúde, se fazendo necessárias, então, a adoção de medidas de isolamento, fechamento temporário de estabelecimentos, e outras. Esta motivação, portanto, é um forte empecilho à aplicação do disposto no artigo 486, da CLT”.
O especialista deixa um alerta. “No caso da necessidade de rescisão de contratos de trabalho, acompanhada de dificuldade financeira para pagamento de verbas rescisórias, recomenda-se verificar se os sindicatos das categorias profissional e econômica assinaram aditivos à convenção coletiva de trabalho com cláusulas não apenas para enfrentamento da pandemia, mas também mais flexíveis no que se refere ao pagamento de verbas rescisórias no caso de rescisão contratual, por exemplo”, finaliza.
Segundo o advogado Gustavo Santana, nunca o artigo em questão foi tão comentado quanto nos últimos dias. “Não há historicamente nenhum relato de fechamento determinado pelos governos como atualmente devido ao caso da pandemia causada pelo coronavírus (covid-19)”, diz.
Santana diz que é necessária que se verifique, primeiramente, a abrangência das indenizações. “A abrangência não inclui de todas as verbas que teriam sido adquiridas pelo trabalho do empregado durante, como por exemplo, 13º salário, férias, horas extras, FGTS, mas somente referente às diretamente ligadas à demissão como por exemplo aviso prévio, multa de 40% sobre FGTS, multa por atraso na rescisão”.
O advogado salienta que muitos estudiosos entendem que na realidade o que determina o fechamento foi a existência da pandemia e não o governo, e que este somente estabeleceu o fechamento para evitar o mau maior. “Entretanto, entendo que a determinação do fechamento puro e simples sem adoção de medidas distintas de enfrentamento da pandemia, bem como o colapso ad eterno da saúde pública por diversos escândalos de desvio de verbas, ensejam a responsabilidade do(s) governos(s) que decretaram o fechamento. Entendo ainda que não só as empresas que tiveram seu fechamento decretado diretamente, mas também aquelas que dependiam das que foram fechadas tem o direito de tentar que o Estado lhes ressarça ou pague diretamente o empregado pelos danos causados”, finaliza.
Acirp analisou pedidos e questionamentos
Em nota a Acirp afirmou que seu departamento jurídico analisou o artigo da CLT após questionamentos de associados “e chegou a um entendimento semelhante ao da maioria dos juristas: que as ações com esse objeto têm pequena chance de prosperar no judiciário”.
“Como se sabe, a pandemia do coronavírus foi reconhecida como motivo de força maior pela MP 927/2020. Por essa razão, o art. 486 da CLT, denominado de “fato príncipe” é de difícil aplicação em relação ao contexto da covid-19. Isso porque as medidas de restrição tomadas pelo Poder Público foram realizadas por motivo de saúde pública como forma de contenção ao coronavírus (força maior) rompendo com o nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano”, explica a entidade.
A nota completa que o argumento do fato do príncipe fica descaracterizado, “especialmente quando o Poder Público demonstrar que as medidas foram tomadas baseadas em pareceres das autoridades de saúde e dados científicos com o intuito de preservação da vida e da dignidade da pessoa humana”.
A Acirp infomou ainda que algumas empresas procuraram a entidade para saber sobre o tema, “mas diante da análise jurídica exposta não quiseram insistir nesse caminho”.
Prefeitura apura notificações
Perguntada se algum empresário ou empresa acionou a Prefeitura de Ribeirão Preto, a Secretaria dos Negócios Jurídicos informou que iniciou busca em sistemas internos, sem, no entanto, revelar se houve ações.
Confira o artigo 486 da CLT
Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
§ 1º – Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.
§ 2º – Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.
§ 3º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.
Situação das empresas em Ribeirão Preto
A Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto, Acirp, fez em maio, uma pesquisa junto aos empresários da cidade em relação à situação das empresas durante a pandemia. Entre as 306 respostas, se destacam:
– 43,1% das empresas seguem recebendo pedidos de maneira presencial, seguindo as regras de distanciamento;
– 55,6% das empresas seguem entregando mercadoria de maneira presencial, seguindo as regras de distanciamento;
– 55,9% das empresas buscaram crédito para enfrentar os efeitos da pandemia, das quais 58,2% tiveram o pedido negado;
– 27,1% das empresas negociaram com sucesso o parcelamento de salários dos colaboradores para o período da quarentena;
– 11,4% das empresas deixaram de pagar salários no período;
– 60,5% das empresas precisaram realizar alguma demissão;
– 42,1% das empresas demitiram 1 ou 2 colaboradores;
– 23,7% das empresas não puderam continuar funcionando, mesmo de maneira restrita.