No último sábado, iniciamos aqui uma abordagem comparativa entre a peste negra que assolou a Europa no século XIV e o novo coronavírus, a pandemia dos nossos dias. São dois momentos e dois mundos diferentes, mas que a trajetória humana acaba impondo alguns liames que nos levam a pensar em algumas semelhanças. Falamos até aqui da origem da peste negra no extremo-oriente, da sua expansão seguindo as rotas de comércio, seus sintomas, suas variantes e formas de contaminação.
Naquela época como hoje, há necessidade de um inimigo a ser responsabilizado. Isso vem da velha visão dicotômica – o nós contra os outros – que permeia as relações de poder na sociedade. Naquela época, os responsáveis por todos os males da cristandade eram os judeus, aqueles que haviam crucificado Jesus e por isso eram o alvo tradicional do ódio popular. Milhares deles foram queimados vivos como forma de fazer valer a ira divina contra doença tão letal.
Passaram-se quase sete séculos e ainda se levantam vozes contra um inimigo comum. Desta vez são os chineses, já que a covid-19 nasceu dentro de um dos seus laboratórios no contexto da guerra geopolítica pela supremacia mundial. E que venham crises diplomáticas, não importa. A ideologia fala mais alto do que a economia. O que importa é manter viva a senha do conflito e do inimigo comum, principalmente em momentos de crise.
Não importa se a China é o nosso principal parceiro comercial. Não importa se ela concentra 90% da produção mundial de insumos para combater a covid-19. A guerra contra o PT e a esquerda não pode cessar. Por trás de tudo isso estão os esquerdopatas! O ranço anticomunista, que ainda persiste em segmentos religiosos e conservadores, insufla a propaganda contra a China. E vai a ala bolsolavista do governo nos criando problemas totalmente dispensáveis em um momento tão difícil.
Mas o que mais me espanta é o verdadeiro deboche dessa gente em relação à ciência e ao conhecimento. Durante a peste negra, era clara a falta de conhecimento das origens e das formas de propagação da doença. Por falta de conhecimento, todos corriam para as igrejas implorando a cura divina e lá dentro todos se contaminavam. Agora, os canais de informação chegam ao stress com todas as mídias falando do assunto. Mas a opção desses senhores é clara pelo deboche diante da informação socializada, ao alcance de todos, mas longe do controle divino.
Esta postura contra a ciência é a mesma campanha de difamação contra Paulo Freire, contra a educação pública, contra as universidades e instituições de pesquisa, em especial as ciências humanas. Estamos pagando caro pela política de sucateamento e redução de investimentos nessas instituições, extremamente agravada agora com o governo neoliberal e de extrema-direita. E nunca dependemos tanto delas para uma saída médico-sanitária diante da pandemia. Mas vale mais a ideologia do que as necessidades de saúde da população. Crápulas!
Vão na mesma linha os vídeos que circularam nas redes sociais essa semana em Ribeirão. Criminosos gravaram o HC e postos de saúde, tentando convencer os incautos de que todo o noticiário sobre a pandemia é uma mentira para enganar as pessoas, é apenas uma “gripezinha”, como quer o mito deles. Grave atentado à saúde e à segurança públicas. Partem da ignorância, mas de uma ignorância travestida também de má-fé, uma ignorância programada para a luta ideológica pelo domínio da sociedade e para a conquista do Estado. Não passarão!
A fratura nunca esteve tão exposta. Trata-se de uma crise civilizatória. Como já falamos, algumas crises epidêmicas impactaram de tal forma certas sociedades que até lhes alteraram o curso da história. Assim foi com a peste negra na Europa. Daquele contexto vieram as revoltas camponesas e a Guerra dos Cem anos que abalaram o poder da nobreza e dos monarcas, acelerou-se a formação do capitalismo, acabou surgindo a Renascença. Triunfou a modernidade. Do novo coronavírus podemos ter uma alteração dramática do curso da nossa história. Mas isso é outro assunto de que falaremos mais adiante.