Tribuna Ribeirão
Cultura

Enquanto isso, no meio da mata…

Por Julio Maria

Ney Matogrosso não está abalado, como não esteve em nenhuma fase atravessada pelos seus 78 anos. Mentira. Houve um momento, lá pelo início dos anos 1980, em que a culpa bateu. Afinal, por que ele não era feliz se tinha tudo o que todos queriam ter e não podiam? Era certo ter dinheiro? Era certo comprar carro? E a pobreza do mundo? A máquina que ele sempre repudiava, a do sucesso, havia, enfim, o devorado? Mas aí, Ney foi para a terapia e logo se reencontrou depois de apanhar muito com o método Fischer-Hoffman, uma terapia de alto impacto emocional e físico que, de fato, devolveu a ele o equilíbrio e a paz.

Quando a aids chegou nos primeiros anos da década de 1980, noticiada pelos jornais como a “peste gay”, um torpedo foi lançado no meio da pista disco Dancin’ Days dos anos 1970 e de toda a liberação sexual e comportamental pregada pelos hippies desde Woodstock, em 1968. A direita religiosa dizia ser um castigo dos céus a banir todo o pecado disseminado por pessoas que insistiam em amar outras pessoas do mesmo sexo.

Ainda quando não se sabia ao certo por onde vinha o vírus, com médicos se paramentando com roupas de astronauta para atender aos pacientes, as pessoas começaram a tombar. Amigos, amigas e namorados, atores, cantores e médicos, muita gente cheia de vida e bronzeada começou a definhar. Em uma semana, Ney foi ao cemitério três vezes enterrar três amigos.

Certo de que estava infectado, até porque pessoas com as quais havia mantido relações sem proteção estavam, seguiu para um laboratório com a tranquilidade das ovelhas de cativeiro. Ao abrir o resultado do exame, leu “negativo”, dobrou o papel e voltou para casa.

Ney caminha entre mortos e feridos desde sempre. Antes da aids eram os militares. “Avisa o Ney Matogrosso que ele será o próximo”, ouviu o compositor Aldir Blanc ao ser levado para uma das dependências da polícia política no Rio de Janeiro. E, antes de tudo, era o pai, o padre, a professora, os amigos, um apresentador de uma espécie de show de calouros em um parque de diversões. Antes que a palavra gay existisse, nos anos de 1940, Ney não escondia suas delicadezas nem temia suas vontades.

Talvez isso explique a tranquilidade na fala de Ney – alguém que atravessou uma guerra mundial, uma ditadura de 21 anos e uma pandemia de aids – e seus posts no Instagram com flores, aves, borboletas, banhos de rio e coisas de alguém que poderia parecer habitar um outro planeta. Quando soube que o mundo iria começar a virar de pernas para o ar mais uma vez, Ney chamou um amigo e foi para onde sempre vai quando não está gravando discos ou com shows na estrada.

Mesmo caminhando na beira dos 80 anos, é o que o novo coronavírus parece ter feito com esta idade, uma beira ainda mais escorregadia, o palco ainda lhe é confortável, tirando a perna que não sobe até onde subia e a voz que precisa de descanso todas as manhãs depois de shows. O alarme soou e ele seguiu para a fazenda que tem desde os anos 1990 em Sampaio Correia, distrito de Saquarema, em uma serra que possui o mesmo nome da fazenda e, por sinal, coincidência ou destino, seu próprio nome: Mato Grosso. É na Fazenda Mato Grosso que Ney passa seus dias de confinamento forçado, sem poder voltar para o Rio e quebrando a série de shows marcados de sua turnê Bloco na Rua.

Não há sacrifício, como a reportagem pôde conferir em uma tarde de 2019, quando esteve ali sem o cantor. A Fazenda Mato Grosso trata-se do lugar mais próximo de tudo o que ele tem como ideia de mundo perfeito, desde os dias de infância em Campo Grande vividos entre cães e pássaros em uma mata nos fundos de sua casa Um riacho de águas cristalinas, muitos caminhos a se desbravar por entre as árvores, alguns cães, uma jacutinga, espécies de aves que uma vida não catalogaria e uma cachoeira. Ele fica em uma casa maior, com dois andares, com muita madeira e bem decorada, mas sem luxo.

A alguns metros dali, descendo pela estradinha de terra, sua mãe, Dona Beíta, 97 anos, vive como quer, cuidando das galinhas e dos porcos. Como o filho, ela não gosta dos dias em que está no Leblon, onde Ney vive teoricamente com mais conforto, em uma cobertura a poucos metros da praia, com um macaquinho como único representante de seu mundo perfeito.

Os vírus devem ter dificuldade se quiserem achar hospedeiros que os levem até a Fazenda Mato Grosso. Eles precisariam primeiro se instalar em algum dos produtos que chegam raramente de um armazém próximo, levados por um funcionário que os deixam a uma distância segura, e resistirem às desinfecções cuidadosas de Dona Beíta. Depois de passarem por todos esses estágios, deverão ainda vencer os mecanismos biológicos de defesa que Ney deve deixar para serem estudados pelos cientistas.

Ney diz não tomar complexos vitamínicos nem fazer tratamentos rejuvenescedores para chegar bem aos 80, mas conta que, além de chupar limões que apanha em pés espalhados pela fazenda e de um revitalizante suco de inhame, cuida dos pulmões, o destino das novas pragas, com um chá de erva de Santa Maria, chamado também, em alguns lugares de Brasil, por mastruz, algo que a medicina das florestas designa com fôlego: “Abortiva, anti-inflamatória, anti-helmíntica, antitumoral, antiviral, antiasmática, antiespasmódica, antipalúdica, aromática, antiulcerosa, antifúngica, anticancerígena, amebicida, antigripal, antinevrálgica e anti-hemorroidal”.

No mais, diz Ney, não há mudança de rotina. “Aqui não tenho que tomar precaução.” Ele sai para fotografar pássaros, plantas e borboletas com seu celular e, quando a temperatura permite, se banhar na cachoeira que fica a um quilômetro da casa de madeira. Mas não imagine Ney cantando pela floresta. “Eu não canto, não sou de cantar. Nem no banheiro.”

As notícias de um mundo desconjuntado das pernas têm chegado pela TV, que Ney não assiste para “manter a sanidade mental”, mas que a mãe sim, fazendo o trabalho sujo por ele, e pela internet, instalada dois dias antes da pandemia chegar ao Brasil “Acho que foi uma intuição. Um rapaz veio me oferecer os serviços de uma internet rural.” Ney diz que, desta vez, sua ida para a fazenda foi mesmo para fugir do novo coronavírus.

“Claro, não iria ficar preso no meu quarto, no Rio. Agora, eu sei também que é difícil para muita gente. Traga pra cá alguém da cidade grande para ver se a pessoa não pira de solidão.” Mas não é assim que estão todas as pessoas? Seja em uma fazenda, seja em uma cidade com 12 milhões de habitantes, não estão todos muito mais solitários do que sempre estiveram?

“Não. As pessoas estão tendo de conviver com elas mesmas. Então, aproveite essa oportunidade de estar só, de se conhecer, olhar para dentro de si.”

Ele diz algo que buscou fazer a vida toda, desde a infância solitária vivida no seu quintal de Campo Grande e depois, com todas as drogas e ervas que consumiu em busca de encontrar a si mesmo. “É hora de pensar e repensar como você está se colocando nesse mundo. As pessoas passam a vida olhando para fora. E não pirem, porque é bom ficar só. Vai ser difícil para muitos, mas procurem tirar um bom proveito disso. É bom ficar só.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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