Dos tempos de estudante, pelo menos hoje, lembro-me de dois acontecimentos que, do fundo da memória, sempre surgem quando o debate envolve a intervenção ou a não intervenção do Estado na sociedade. Confesso que, com fundamento na melhor doutrina dominante, a sociedade civil está sobre o Estado Democrático. Portanto, não tem nenhum cabimento proclamar que o Estado está sobre a sociedade civil.
Insisto sempre em repetir a famosa lição de Stassinopoulos, segundo a qual, predominando a democracia, os membros da sociedade civil podem fazer tudo, menos o que a lei proíbe. Ao contrário, o Estado e todos os seus servidores não podem fazer nada, salvo o que a lei autoriza.
Enquanto estive na escola, ainda não havia sido inaugurada a cadeira de Direito Tributário, o que ocorreu já no andamento da década de sessenta por conta do esforço realizado pelo baiano Aliomar Baleeiro. Até então, as questões atinentes eram examinadas na cadeira de Ciência das Finanças.
O inglês Keynes era sempre referido, pois havia sido a voz mais importante para tirar o mundo do lodaçal resultante da quebradeira que teve seu leito no final da Primeira Grande Guerra, quando então ocorreu a epidemia da “gripe espanhola” que, segundo os anais, matou mais de 50 milhões de pessoas.
O sistema econômico foi para o brejo em 1929, com a quebra da Bolsa de Nova York: o mercado europeu evaporou, passando a consumir muito pouco as mercadorias americanas.
O café brasileiro também perdeu seu mercado, tendo em conta a contração do mercado consumidor, o que levou o nosso governo a comprar boa parte de nossa produção, queimando-a, a seguir.
Keynes propôs aos governos que provocassem uma intervenção no mercado, transformado então numa lagoa adormecida, gerando até meios artificiais, como, por exemplo, construir estradas até mesmo as desnecessárias. O desemprego diminuiria, o mercado tomaria vulto e o progresso ressuscitaria.
Os historiadores afirmam que tal foi a política econômica aplicada por Roosevelt que, com essas ferramentas, tirou os Estados Unidos do brejo. As lições de Keynes foram esquecidas, quando não atingidas por fortíssima crítica: o Estado não pode ou não deve intervir no mercado, assim proclamam as autoridades de hoje. Leio nos jornais que o mundo de hoje assemelha-se com o do passado. Não temos a gripe espanhola, mas temos o coronavírus; temos guerras espalhadas por todo o lado, principalmente na Ásia; o desemprego cresce; as lojas fecham suas portas todos os dias.
O segundo fato que surgiu na minha memória resulta de ter conhecido um colega que havia sido aprovado no exame de ingresso em primeiro lugar. Chamava-se José Guilherme Merchior. O jornalista Nelson Rodrigues afirmava que aquele gênio havia nascido chorando em pelo menos seis idiomas diferentes. Já embaixador, José Guilherme morreu com 49 anos, casado com sua primeira namorada. Escreveu cerca de 50 livros, alguns em inglês e outros em francês. Era membro da Academia Brasileira de Letras. Era anticomunista.
Receitava a aproximação de um Estado forte e intervencionista ao lado de um mercado sempre em crescimento, submetidos às regras do Estado Democrático de Direito.
Há poucos dias, testemunhando o fechamento de empresas, com o crescimento do desemprego e o surgimento da “lagoa adormecida”, da qual nasceu o coronavírus, fui surpreendido pelo noticiário dos jornais, ressuscitando Keynes e José Guilherme Merchior. Será?