De acordo com o divulgado pela Agência FAPESP, ao longo de décadas, o fado permitiu que milhares de emigrantes no Brasil, bem como, seus filhos e netos nascidos fora de Portugal recuperassem suas origens identitárias, reconhecendo-se não somente agricultores ou pescadores de localidades isoladas e rurais, mas, sim, portugueses legítimos. Uma vez que, em Portugal, a maioria dessas pessoas desconhecia o fado, foi sua chegada ao Brasil, seguida do acesso aos programas de rádio dedicados ao gênero musical d’além-mar, que lhes permitiu redescobrir a terra de Camões enquanto pátria a ser cantata e sentida pelo viés de uma saudade nostálgica. Segundo a Agência, o fado, nascido ou renascido nos bairros lisboetas de Mouraria e Alfama, então redutos de marginais e prostitutas, foi, de início, estigmatizado pela intelectualidade conservadora. Para esse segmento da alta sociedade, que pretendia “regenerar” a nação portuguesa, o fado representava o exato oposto de seu ideal. Seu paradigma musical eram as canções folclóricas de origem rural, com sua celebração solar do trabalho ou da religião. Já o fado, por natureza noturno, sentimental, melancólico, associado à “vida ociosa e desregrada”, era bem o avesso disso. Neste contexto, a imprensa erigia-se trincheira dessa intelectualidade conservadora em sua batalha contra o fado. No entanto, a emergência de novas mídias como o disco, o rádio e o cinema fez mudar completamente o cenário. Seus protagonistas, percebendo que o caráter anticonvencional, muitas vezes irônico e crítico, do fado estabelecia uma linha de comunicação direta com o público, apostaram no gênero que, rapidamente, se difundiu no país e na emigração.
O primeiro filme sonoro português, “A Severa”, exaltou a figura da primeira fadista conhecida, a prostituta Maria Severa Onofriana, que, morta de tuberculose aos 26 anos, e tendo vivenciado um relacionamento amoroso em certa medida reedição do famoso romance proibido de Dona Inês de Castro (morta em 1355) com o príncipe herdeiro do trono português, sacralizou o gênero, o qual pôde transitar das “tabernas suspeitas” para as “casas de família”, atingindo o auge por meio de dois nomes principais: Alfredo Marceneiro (Alfredo Rodrigo Duarte, 1891-1982) e Amália Rodrigues (1920-1999), epígonos do fado castiço e do fado canção, respectivamente. A mesma Amália para quem, no Rio de Janeiro, o compositor português Frederico Valério (1913-1982) compôs um dos mais famosos fados de todos os tempos: “Ai Mouraria”. Ainda na pesquisa divulgada pela Agência, menciona-se que o fato de o fado ter ocupado tal espaço no imaginário do imigrante se deve, principalmente, à natureza predominantemente sentimental, melancólica e nostálgica do gênero, cultivado de uma “dor da alma”, muito apropriada ao que sente a pessoa que está fora de seu contexto de origem, ainda que nem todos os fados sejam tristes. “Ante o impacto da separação e da partida, a música desempenha papel da maior importância na construção ou reconstrução dos indivíduos e da sociedade… Pela música podem ser atualizadas memórias, bem como sentimentos de pertença e vinculação, mesmo naqueles cujo trajeto e linhagem não contêm essas memórias específicas”. Neste caso, luso-descendentes e cidadãos não portugueses podem viver, pela música, “imaginários de portugalidade”.
Historicamente, o fado, na década de 1960, tornou-se malvisto nos segmentos mais progressistas da sociedade portuguesa ao ser associado ao regime de Salazar. A partir da Revolução dos Cravos, em 1975, ele quase desapareceu, ficando restrito a poucos redutos. Foi, portanto, a emigração que assegurou a sobrevivência do gênero. Mas, pela década de 1990, ocorreu um fenômeno curioso. Jovens, que haviam nascido nos anos 1970, e pouco ou nada sabiam do fado, entraram, muitas vezes de forma casual, em contato com o gênero, apaixonando-se pelo mesmo. As gravadoras, sensíveis a esse fenômeno, perceberam nele um novo nicho de mercado e tal revivescência se alastrou pelo mundo. Mísia, representante típica do momento, musicou textos de Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís e outros nomes da alta literatura. Processo semelhante viria a se repetir na geração posterior. Mas, neste ponto, porém, voltam a pesar as diferenças de tempo e temperamento. As novidades, que fazem sucesso na Europa, são praticamente ignoradas no Brasil. “Os portugueses do Brasil gostam mais daqueles fadistas já consolidados e que frequentemente visitam o Brasil, como Carlos do Carmo”, comenta a Agência. Publicado com o apoio da FAPESP, o livro “Trago o fado nos sentidos”, organizado por Heloísa de Araújo Duarte Valente, é uma oportunidade para embarcar no mundo dos admiradores e conhecedores do gênero, revivendo sua reminiscência e nostalgia.