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Abstinência sexual como política pública

Eu estava disposto a ficar um bom tempo sem escrever sobre os evangé­licos depois de ter publicado dois artigos seguidos sobre eles recentemente aqui no Tribuna. Mas não teve jeito. A Damares me fez cair em tentação e me vejo obrigado a comentar hoje mais uma de suas sandices, pois é inspira­da, mais uma vez, em mandamentos religiosos. Aliás, muito bom o artigo de Pedro Rafael Vilela no 247 sobre a campanha “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois”, ao custo de R$ 3,5 milhões, lançada recentemente pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Huma­nos, da qual Damares é a titular.

A gravidez precoce é, de fato, um problema a ser enfrentado no Brasil. De acordo com um estudo de 2018 da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa mundial de gravidez na adolescência é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos. No Brasil, a previsão sobe para 68,4, maior do que a taxa geral da América Latina/Caribe, que é de 65,5 nascimentos. Não há dúvida que há necessidade de uma política pública para enfrentar este problema. Mas muito longe desta da ministra.

A campanha tem a abstinência sexual como principal política de preven­ção da gravidez precoce. Para Pedro Vilela, a iniciativa é vista como muito problemática por especialistas em saúde pública e até por pastores evangéli­cos. Elaine Reis Brandão, professora do Instituto de Estudos em Saúde Co­letiva da UFRJ, por exemplo, diz que a medida do governo é ineficaz e que o caminho correto passa por ações de educação sexual”. Mas isso é tudo que os evangélicos fundamentalistas não querem ouvir. Para eles, educação sexual se dá em casa e não na escola, como se todas as famílias tivessem condições de proporcioná-la aos seus filhos.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também divulgou um docu­mento bem fundamentado com considerações sobre a proposta. No texto, a entidade enfatiza que o amplo acesso à educação e à informação, associado à disponibilidade de serviços de saúde qualificados, representam a única ferra­menta comprovadamente eficaz para lidar com a questão. Para a SBP, a ausên­cia do uso de métodos contraceptivos, a dificuldade de acesso a programas de planejamento familiar e sobretudo a falta de informação adequada e sistemati­zada para os jovens têm contribuído para o aumento da gravidez precoce.

É muito importante destacar que não é unanimidade entre os evangéli­cos o apoio a esta política. Alexandre Gonçalves, pastor da Igreja de Deus, citado no artigo de Vilela, rechaça completamente o modelo de campanha adotado que, segundo ele, tenta impor uma doutrina a toda população. “Ela lança mão de uma doutrina, que é para ser restrito a quem, voluntariamente, quer seguir os ensinamentos cristãos, e lança isso para o conjunto inteiro da população. Isso é, do ponto de vista teológico, uma tremenda heresia, e do ponto de vista social e político, um abuso”, afirma. E acrescento: mais um ataque ao Estado laico.

Gonçalves ressalta que a abstinência sexual tem pouca adesão mesmo entre convertidos. “Ela esquece que nem na igreja essa ideia funciona”, afirma categoricamente. “Sou pastor há 25 anos, tenho a experiência clara de que 90% dos casais de namorados e noivos acabam tendo relação sexual antes do casa­mento. E a Damares sabe disso, é uma realidade. Se na igreja evangélica, com pessoas que estão ali voluntariamente e sabendo desse preceito, essas pessoas não conseguem cumprir, quanto mais se isso for para a população em geral, que não tem qualquer obrigação de acreditar na fé cristã”, acrescenta.

Sabemos muito bem que o que está por trás de mais esta sandice da mi­nistra Damares é a ideia de que a cultura cristã tem que ser imposta, doutrina conhecida entre os teólogos como “teologia do domínio”. Difundida com força por setores evangélicos desde os anos 1980, esse ramo da teologia cristã busca fazer com que cristãos ocupem espaços de poder para desenvolver a agenda pública pautada por questões religiosas. Esta teologia prega que o evangelho tem que dominar a sociedade e para isso a igreja tem que levantar líderes na economia, na política, nas artes, etc. para que a cultura judaico­-cristã seja implantada na sociedade, e com isso as leis civis e morais da reli­gião cristã possam vigorar para todo o conjunto da sociedade. Nada diferente do que ocorre nos países dominados pelo islamismo fundamentalista.

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