Por Gonçalo Junior
A nadadora Ana Marcela Cunha viveu um ano mágico em 2019. Foram duas medalhas de ouro na maratona aquática do Mundial de Esportes Aquáticos de Gwangju, na Coreia do Sul. Ela repetiu a primeira colocação nos Jogos Pan-Americanos, em Lima, no Peru. Além disso, venceu cinco etapas do circuito de maratonas aquáticas e foi escolhida a melhor nadadora do mundo em águas abertas pela revista norte-americana Swimming World.
Em 2020, ela busca o maior feito de sua carreira: a inédita medalha olímpica. Será sua terceira tentativa. Em Pequim-2008, ela ficou em quinto lugar. No Rio-2016, terminou em 10º. Entre as duas edições, a maior decepção de sua carreira quando não se classificou para Londres-2012. O ano olímpico começou no momento em que confirmou a vaga, ainda no mês de julho do ano passado. Essa precocidade representa uma vantagem competitiva para a prova dos 10 km, a única que será disputada em Tóquio.
“Existem algumas meninas que ainda não estão classificadas e que são fortes. Elas só terão praticamente três meses entre a seletiva e a Olimpíada. Nós fizemos um planejamento de 13 meses. Isso é um ponto muito positivo para mim”, afirma Ana Marcela ao Estado.
A nadadora também abordou temas polêmicos, como a homossexualidade, e revela que evita abraçar a namorada em locais públicos com receio de atos de violência. A nadadora da Universidade Santa Cecília, de Santos, também falou sobre o empoderamento feminino. “É gratificante ser exemplo e ser espelho para a nova geração no esporte”, afirmou.
Em 2019, você foi tetracampeã mundial, campeã dos Jogos Pan-americanos, tornou-se a maior medalhista de maratona aquática em Campeonatos Mundiais e entrou para o Hall da Fama da modalidade. Como explicar essa sequência?
É muito treino e muita constância no que estamos fazendo. Existem meninas de qualidade, de ponta, brigando para estar entre as primeiras. A nossa sequência ajuda muito. É o que a gente usa como arma. A gente consegue se manter em alto nível. Quando a gente fica muito tempo treinando sem competir, a gente fica em um nível “mais ou menos”. As competições permitem evoluir.
Depois de tantas conquistas, no que você ainda pode melhorar?
Nosso diferencial é fazer uma sessão de treinos a mais. Terei dois treinos aos sábados. Além disso, nós teremos dois treinamentos em altitude, o que não fizemos em 2019. Fizemos apenas um no começo do ano que seria a base para o ano todo. O primeiro treinamento vale para o ano todo, mas o segundo será mais focado na Olimpíada. São diferenciais de 2019 para 2020. A gente espera que isso faça diferença.
Qual será sua programação de treinos e competições neste ano?
Teremos duas ou três etapas da Copa do Mundo. Vamos nadar como convidados no Campeonato Francês e o Campeonato Americano. São dois torneios fortes. Vamos competir menos em etapas de Copa do Mundo para não ficarmos muito visados. Escolhemos algumas provas que não são tão cheias.
Você já pensa nos Jogos de Tóquio?
Com toda certeza. Comecei a pensar no momento em que me classifiquei. A classificação abriu o ano olímpico. Com a vaga garantida, foi possível fazer um planejamento e ter uma ideia do que a gente pode bolar para o ano. Isso me ajuda muito. Existem algumas meninas que ainda não estão classificadas e que são fortes. Elas só terão praticamente três meses entre a seletiva e a Olimpíada. Nós fizemos um planejamento de 13 meses entre Mundial e Olimpíada. Isso é um ponto muito positivo para mim.
A prova olímpica terá alguma particularidade, alguma característica diferente?
Cada Olimpíada foi num local completamente diferente do outro. Não dá para comparar uma Olimpíada e outra. Não dá nem para comparar uma prova com a outra. Eu posso nadar um dia no mar e, no dia seguinte, no mesmo horário, no mesmo segundo, ele estará totalmente diferente. O mar não é igual. Isso é divertido. Eu e o Fernando (treinador Fernando Possenti) achamos isso. É impossível prever. É uma prova de 10 km, quatro, cinco ou seis voltas. O circuito pode ser triangular, um quadrado ou um retângulo. Muitos fatores de tempo, vento, maré e correnteza.
Você é um exemplo do sucesso da mulher no esporte. Como avalia a questão do empoderamento e da luta da mulher por espaço em outras áreas da sociedade?
No esporte, somos carentes de mulheres que trazem isso. Na natação, nós temos a Maria Lenk e a Piedade Coutinho que foram exemplos e abriram o caminho para o resto das mulheres, como eu, Etiene, Joana, Poliana e tantas outras. Na época delas, era pior ainda. Elas não tinham tanto status. Hoje, estamos melhorando e ficando de igual para igual. Nós conseguimos coisas diferentes. Se hoje nós vivemos uma evolução, a situação delas foi pior.
Você se sente como exemplo para as mais jovens?
Sou mulher, nordestina e bisneta de índios e negros. É gratificante ser exemplo e ser espelho para a nova geração no esporte. A mulher tem muita força. Está dentro dela. É preciso bater o pé no chão e dizer “é isso que quero”. A gente sempre pode um pouco mais. A imagem que eu criei no esporte me ajuda muito. É uma porta aberta para ser exemplo e querer continuar sendo. Muita gente é exemplo, acaba se perdendo um pouco, deixa de ser e vai para o lado ruim. Quero continuar sendo exemplo. Somos carentes disso. Quero ser lembrada, como eu tenho ídolos e ídolas. De repente, eu quero ser uma também.
Qual foi o maior desafio que já enfrentou na sua vida até hoje?
Todo atleta vive disso, de cair e levantar. Isso é um desafio. Às vezes, eu chego para treinar e é um desafio. Tudo o que eu já passei foi um grande desafio. Ficar fora de Londres-2012 me fez crescer muito como atleta. Ter descoberto uma doença antes de 2016, ter nadado a Olimpíada, feito a cirurgia e estar 100% curada, sem resquício de nada, são outras vitórias. Retribuir o que minha família fez por mim é outra vitória. Todo dia a gente pode absorver uma luta e uma batalha que foram vencidas.
Qual é seu maior medo?
Eu respeito o mar. Muita gente fala: “o mar está batido. Vamos entrar?”. Não tenho medo do mar, mas eu respeito. Eu sei nadar, posso pegar onda, mas eu respeito o mar. Nem de morrer eu tenho medo. Posso ter medo de ver meus pais vindo a falecer ou se eles sofrerem alguma coisa. Ao mesmo tempo, isso faz parte da nossa vida e do que a gente tem pela frente. Não tenho medo de altura, de pular de paraquedas, não tenho esses medos.
Você teve receio de expor seu namoro com a jogadora de polo aquático Diana Abla?
Acho que não. Aos poucos, eu fui encontrando a hora certa de fazer as coisas. Em nenhum momento, eu impus alguma coisa. Foi pelas redes sociais. Aos poucos, nós fomos postando fotos e as pessoas foram entendendo. Muitas pessoas se identificaram. Pessoas que não sabiam como falar e agir. Você não pode deixar de ser feliz por causa dos outros. Isso é o mais importante: estar feliz. Eu faço o que eu amo e sou feliz com o que eu faço. Se você ama e está feliz, não tem porque não estar junto. Recebi muitas mensagens de apoio e de gente que falava ‘minha família não sabe’. A primeira coisa foi falar com minha família. Não posso esconder o que me faz bem.
Já foi vítima de preconceito?
Nunca. Ninguém falou nada para mim nas redes sociais nem pessoalmente. Graças a Deus, eu nunca vivi. Se eu tiver de viver, será paz e amor. Se alguém vier com uma pedra, você dá uma pena. Não vale ficar brigando e discutindo. Lógico que a gente tem medo. Nem todo mundo respeita. Quando a gente está na rua, a gente pode encontrar pessoas que têm preconceito ou coisa assim. A gente não anda dando muito abraço. Eu já vi mãe e filha se abraçarem e serem agredidas por isso. Isso existiu. É bem complicado. A cada nova geração, as pessoas conseguem entender melhor. A Parada Gay virou uma festa, com todo tipo de gente. A aceitação é muito maior.