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Cultura

Greta Gerwig acerta o tom em sua versão de ‘Adoráveis Mulheres’

Por Luiz Carlos Merten

Em sua edição de novembro/dezembro, a revista Film Comment – editada pela associação do Lincoln Center, de Nova York – dedica a capa e oito páginas internas à entrevista com a diretora e roteirista Greta Gerwig, de Adoráveis Mulheres. É a maior matéria da edição, que também contempla dois dos filmes mais falados do ano que passou – O Irlandês, de Martin Scorsese, e Retrato de Uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma. Pode ser um filme clássico e radical? É como Film Comment define a nova versão de Little Women – Radical Classical. É a sexta adaptação do livro de Louisa May Alcott, sendo as duas primeiras obras ainda do período silencioso. Seguiram-se, no sonoro, as versões de George Cukor (1933), Mervyn LeRoy (1949), Gillian Armstrong (1994) e agora a de Greta.

Quatro Irmãs, a versão de Cukor, com Katharine Hepburn como Jo, ostenta a reputação de ter sido um filme adiante de sua época. De que outra maneira explicar o fato de que, até hoje, pode ser visto com imenso prazer, colocando, por meio da protofeminista Hepburn, questões que ainda são relevantes sobre a condição da mulher na sociedade? Quatro Destinos, a versão de LeRoy, é a mais anódina de todas, embora se beneficie do cuidado de produção da Metro e do elenco que privilegia as novas estrelas da casa, notadamente a jovem Elizabeth Taylor (June Allyson é quem faz Jo). A versão da australiana Gillian, lançada no Brasil como Adoráveis Mulheres, mereceu de Leonard Maltin, em seu guia, um elogio nada negligenciável: “Nenhuma nota em falso”, exceto o fato de que a diretora, para atualizar seu material, recorre a um linguajar chulo incompatível com a prosa de Louisa May Alcott

O livro foi publicado em 1868, logo após a Guerra Civil dos EUA, que terminara em 1865. Conta a história de quatro irmãs, crescendo durante a guerra. O pai está ausente, combatendo no front, e a mãe vira a fortaleza do lar. As irmãs são diferentes entre si, e Jo, inspirada na autora, desde logo revela seu pendor para a escrita. À Film Comment, Greta contou que sempre conheceu o livro e sua reputação – grandes escritoras (Simone de Beauvoir, Susan Sontag, Ursula Le Guin) viram em Mulherzinhas, tradução literal, um duplo estudo, sobre o que é ser mulher e o desejo de escrever. Greta reuniu anotações. No dia seguinte ao Oscar de Ladybird – A Hora de Voar, reuniu o material que já coletara e se isolou para encarar o desafio de criar uma nova versão, mais moderna, radical, da história clássica.

Senhora do destino

Na mesma edição de Film Comment que tem Adoráveis Mulheres na capa, há uma minientrevista com Tracy Letts. O dramaturgo premiado com o Pulitzer – Agosto – tem sido o próprio roteiristas nas adaptações de seus textos para o cinema. Ultimamente, deu de ser, também, ator. Faz o magnata do automobilismo Henry Ford III em Ford Vs. Ferrari, de James Mangold, e o editor a quem Jo/Saoirse Ronan oferece seus originais na abertura e no encerramento do filme.

Adoráveis Mulheres foi praticamente ignorado no Globo de Ouro – os correspondentes estrangeiros de Hollywood não entenderam nada das intenções da diretora e roteirista Greta Gerwig. Há expectativa de que ela obtenha melhor resultado no anúncio do Oscar, na segunda-feira, 13. Quem sabe? Tracy Letts não deixa por menos: “Greta tornou-se uma grande amiga e importante colaboradora em minha vida. Essa mulher é um gênio! Quem quiser falar de adaptação, não fale comigo, fale com ela. Greta conseguiu honrar uma história original que é clássica e, ao mesmo tempo, transformou-a numa peça contemporânea”.

À luz das numerosas adaptações anteriores – o livro de Louisa May Alcott também inspirou peças e até uma ópera -, o que faz toda diferença é o começo e o fim de Adoráveis Mulheres. Olha o spoiler! Greta Gerwig começa o filme com sua heroína, Jo, em movimento – correndo. Na abertura, ela consegue vender uma história curta ao editor (Tracy Letts) e ainda ouve dele uma série de recomendações – ou serão imposições? – sobre o que e como deve escrever.

Duas horas mais tarde, e depois de toda a desgraceira e também a felicidade que atingiu a vida familiar, ela está de volta com o manuscrito de Little Women. Muita coisa, mas principalmente Jo mudou. Ela negocia, taco no taco, com o editor. Tenta manter o direito autoral, o copyright do próprio trabalho. Numa sociedade – num mundo – controlado pelos homens, será uma mulher dona de si mesma. Uma feminista ‘avant la lettre’.

Existem curiosas similaridades entre Greta e a heroína, Jo. Na entrevista à revista Film Comment, Greta conta que o livro de Louisa May Alcott sempre esteve presente em sua vida. Uma informação aqui, outra ali, e ela descobriu que importantes autoras contemporâneas identificavam em Adoráveis Mulheres um duplo estudo da condição feminina, no mundo dos homens, e da aspiração pela escrita. O que leva Jo a querer escrever, a fixar suas observações, impressões, emoções na folha em branco? Casada com o cineasta Noah Baumbach, de História de Um Casamento, Greta colaborou em alguns roteiros, além de ser sua atriz. Mas o crédito era dele – uma mulher à sombra de um homem.

O sucesso de público e crítica de Ladybird – A Hora de Voar libertou-a. Greta reuniu suas anotações sobre Louisa May Alcott e Adoráveis Mulheres, inclusive o esboço de roteiro que escrevera ainda antes do longa anterior, com Saoirse Ronan. Romanticamente, isolou-se numa cabana ‘in the Woods’.

Como ela diz, trazer aquele mundo à vida passava por um encontro consigo mesma. Ela tinha de encontrar seu viés para entrar naquela realidade, para torná-la verdadeira, e essa teria de seria uma experiência solitária.

Uma frase no filme é decisiva para marcar sua modernidade. Jo/Saoirse diz a Marmee, a mãe, interpretada por Laura Dern – que ganhou o Globo de Ouro de coadjuvante por História de Um Casamento. (Laura é uma amiga da família Baumbach/Gerwig.) “Estou cansada dessa gente que diz que as mulheres são feitas para o amor, cansada mas também solitária. Sinto-me sozinha.” A frase não é de Adoráveis Mulheres, não se encontra no livro, mas Greta pinçou-a de outra criação de Louisa May Alcott – Rose in Bloom. Há mais de 150 anos Louisa já expressava um mal-estar que hoje, cada vez mais, as mulheres verbalizam com crescente naturalidade, e autoridade.

Quatro irmãs, quatro destinos. Jo, Amy, Meg, Beth. Cada uma das filhas de Marmee March representa alguma coisa, uma aspiração, um desejo. A filha com personalidade forte, que escreve no sótão da casa. A vaidosa. A pacificadora. A obediente. Mulherzinhas – e seus homens. O pai ausente. O pretendente, Laurie, com quem Jo mantém uma relação enrolada que de alguma forma evoca o triângulo de …E o Vento Levou, outra história – de Margaret Mitchell – da Guerra Civil. Como Scarlett, que passa a vida pensando amar Ashley, Jo também fará uma descoberta ao longo dessa história. O que leva a Friedrich Bhaer e a Louis Garrel.

O elenco é um dos trunfos de Adoráveis Mulheres – Saoirse Ronan, com quem Greta já trabalhara em Ladybird, Laura Dern, Meryl Streep (como Tia March), Emma Watson, Florence Pugh, Timothée Chalamet. Greta tem um carinho especial por seus franceses – Louis, ele próprio ator e diretor, o compositor, Alexandre Desplat. Greta cita entre suas referências A História de Adele H, de François Truffaut, e Esther Kahn, de Arnaud Desplechin. E Vincente Minnelli, Agora Seremos Felizes. Desplat entregou-lhe o que ela queria – a partitura de um musical sem canções, mas em que a música também conta a história. Supremo refinamento – as duas notas finais, com a tela já escura. Um luxo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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