Por Luiz Zanin Oricchio
Hostilizado pelo governo, o cinema brasileiro viveu um ano para lá de bom. Explica-se: o que chegou às telas em 2019 é fruto de trabalho dos anos anteriores. Não sabemos como será daqui para a frente. Em todo caso, constate-se, o ano foi brilhante. A começar pelos premiados internacionais, entre os quais destacam-se Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, ambos premiados no mais badalado festival de cinema do mundo, Cannes, na França.
A justo título, Bacurau tornou-se o filme do ano, e não apenas por seus prêmios e sua qualidade estética, mas por uma questão de timing, talvez até involuntária. Com sua fábula distópica de um futuro no qual partes do Brasil se tornam territórios de caça de países desenvolvidos, Bacurau levantou enorme polêmica simplesmente pelo fato de ter colocado em pauta a resistência popular. Ao contestar a “índole pacífica do povo brasileiro”, como dizem os políticos, tal hipótese, ainda que ficcional, despertou a ira de bem-pensantes patrícios.
Já Vida Invisível aborda a questão feminina através da história de duas irmãs que não conseguem realizar suas potencialidades, vítimas do machismo brasileiro no Rio dos anos 1950. Baseado no livro de Martha Batalha, o filme foi indicado pelo Brasil para concorrer a uma das vagas do Oscar, mas não chegou lá. Isso em nada o diminui. É de uma beleza terna e de uma tristeza infinita Fernanda Montenegro entra nos 15 minutos finais e arrasa.
A produção documental também bombou. Entre dezenas de lançamentos, destaco Democracia em Vertigem, de Petra Costa, presente na shortlist da categoria no Oscar. Ainda pode disputar a estatueta. É uma leitura bastante pessoal – e talvez por isso mesmo muito interessante – de todo o processo que começou com as manifestações em 2013, desestabilizou governos, levou ao impeachment de Dilma, à prisão de Lula, e culminou com a eleição em 2018 de um político de extrema-direita. Um retrato da tragédia brasileira.
Torre das Donzelas, de Susanna Lira, relaciona-se com o tema, abordando o tempo da ditadura através de memórias de presas políticas.
Outro documentário, Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, mostra uma faceta oculta do “empreendedorismo” à brasileira. Os habitantes de Toritama, no interior de Pernambuco, ralam o ano inteiro na fabricação de jeans, em condições insalubres e inumanas, e tiram uma folga para o carnaval, quando vendem tudo e vão à praia se divertir alguns dias. A Quarta-Feira de Cinzas assinala o início de novo ciclo.
A exemplo de Bacurau, outro filme pernambucano, Divino Amor, projeta uma distopia brasileira para daqui a poucos anos. Desta vez, na imaginação de Gabriel Mascaro, temos uma república evangélica na qual o culto à Bíblia e à carne se equivalem. Uma crítica corrosiva ao fanatismo religioso contemporâneo. Ainda bem que os pastores não o viram, senão causaria mais escândalo que o especial de Natal do Porta dos Fundos.
Essas breves linhas deixam de fora muita coisa boa. Por exemplo, o intimismo político do belo filme mineiro Temporada, de André Novais Oliveira. Domingo, de Felipe Barbosa, criativa história de uma reunião de família no dia em que Lula venceu a eleição. A pegada forte de Mormaço, de Marina Meliande, e a história da expulsão de moradores para a Olimpíada no Rio. Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, com sua deslumbrante estética beirando o kitsch, um Querelle à brasileira. A sempre rica imaginação visual de Edgard Navarro em Abaixo a Gravidade.
Pela diversidade estética e temática, pelo desejo de tematizar o status quo, indo além dele, o cinema brasileiro tem cumprido sua missão de forma muito efetiva. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.