A família de Gugu Liberato teve o nobre gesto de doar os órgãos do apresentador, um desejo dele próprio, e segundo foi noticiado, aproximadamente 50 pessoas serão beneficiadas. Fiquei imaginando o que geraria tamanha oferta do nosso corpo, o que seria retirado para ajudar tantas pessoas necessitadas?
Vivi situação parecida e já escrevi sobre este fato faz mais de dez anos. Meu filho Lucas Bueno teve que partir após sofrer um acidente automobilístico quando vinha de São Carlos para Ribeirão Preto. Tentamos doar o que fosse possível de seu corpo. Fez 14 anos no último dia 17 de agosto.
Lucas, então com 26 anos, não fumava e não bebia, portanto, imagino o quanto dele poderia ser útil para quem aguardava na fila do transplante de órgãos – acho que os dele eram perfeitos. Porém, o fato de o acidente ter ocorrido em uma rodovia, longe de um hospital onde os procedimentos são instantâneos, dificultou a doação.
Somente suas córneas foram retiradas. Com elas, duas pessoas que nada podiam ver voltaram a apreciar o nascer e o pôr do Sol, coisa linda que a natureza nos oferece de graça e que muitos não percebem. As fases da lua, a beleza das flores, enfim, o mundo ao redor.
Nem sei quantas vezes o saudoso e querido amigo Wilson Toni me ligou perguntando se a equipe do Hospital das Clinicas de Ribeirão Preto havia chegado ao local do acidente. Eu e minha esposa ali, ao lado do corpo do nosso filho, coberto com alguma coisa que não me lembro o que era, esperávamos pela ordem da autoridade policial para a remoção do corpo, que seguiria para Santa Lúcia, depois para Araraquara. Essa longa espera, a cena do acidente, tudo aquilo pra nós foi muito doloroso.
O corpo do Lucas permaneceu na grama, além do acostamento, por várias horas. Ninguém pode imaginar o que passou pelo meu peito, o peito de um pai que ali, ao lado do filho, via passar em sua cabeça um filme retratando toda sua trajetória como policial rodoviário, que perdeu a conta de quantas vidas ajudou a salvar em acidentes como este que vitimou o filho.
Questionava a mim mesmo, olhando para o Lucas ali, porque não consegui salvá-lo? Porque não cheguei antes de seu carro bater com o caminhão? Essas respostas feitas para mim mesmo ali, em silêncio, só pude obter com as mensagens psicografadas enviadas por ele, esclarecendo tudo. Ele sempre repetia: “Pai, tinha que ser assim”.
O acidente foi em agosto, e sabia que duas pessoas voltaram a ver o mundo com um pedacinho do meu filho. Em dezembro, recebemos um convite do Banco de Olhos do Hospital das Clinicas para uma missa a ser realizada no Santuário Nossa Senhora Aparecida, para as famílias de doadores.
Eu e minha esposa fomos, a igreja estava superlotada, e nós não conhecíamos ninguém. Na entrada havia um enorme banner com os nomes dos doadores, em ordem alfabética. A letra “L” de Lucas estava lá em baixo. Choramos muito, cada mãe recebeu uma rosa, descobrimos que o público presente era de receptores e famílias doadoras do Brasil inteiro.
Forte emoção o tempo todo. De repente, uma linda jovem foi ao microfone e leu um texto sobre a importância da doação de órgãos. No final ela disse que até seis meses atrás nada enxergava e estava ali lendo aquele texto graças a família de um motociclista que faleceu ao sofrer um acidente de moto, na Via Norte, aqui em Ribeirão Preto.
Para onde a gente olhava, todos estavam enxugando lágrimas, eram lágrimas de tipo “foi a vontade de Deus”. Este trabalho maravilhoso do Hospital das Clinicas, que até então eu nem sabia que existia, continua para o conforto de muitas famílias. A vida segue e quem sabe eu já tenha cruzado com os olhos de Lucas por aí? Quem sabe?
Sexta conto mais.