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Memórias e lembranças

Menino ainda pequeno, brincava eu no portão de casa quando chegou nosso vizinho Robin Antônio Calil, portando uma panela diferente e pedindo para falar com meus pais. Atendido, Robin Calil mostrou a minha mãe e a meu pai uma novidade que havia trazido de sua loja: uma panela de pressão, que oferecia para permanecer alguns dias em casa a fim de ser testada.

Esta lembrança me veio ao ler o excelente volume 4, das Histó­rias da Gente Brasileira, da escritora e historiadora Mary del Priore, volume que abrange o período de 1951 a 2000. Além da parte, digamos assim política do período, del Priore abrange as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira na sua modernização, prin­cipiada pelo surgimento dos eletrodomésticos e seus antecessores: o fogão a gás, por exemplo.

Na minha casa, a comida era preparada no fogão a lenha, igual ao que são hoje encontrados em restaurantes de comida mineira: uma estrutura de tijolos, geralmente conectada a um dos cantos da cozinha, com um grande e comprido buraco central. Forrando-o havia uma grade por onde passavam os restos da lenha queimada e na parte de cima, uma chapa de ferro, com buracos de tamanhos di­ferentes e que sustentavam as panelas. Na lateral, um forno pequeno.

Quinzenalmente, um carroceiro trazia um carrinho cheio de pequenas toras que meu pai rachava no nosso quintal. Por dentro do fogão, havia uma serpentina que aquecia a água do banheiro e da própria cozinha (não havia, como hoje, mais de um banheiro nas casas). As brasas que se formavam eram mexidas com um estilete de metal, também usado por minha mãe para queimar o açúcar colo­cado sobre o rocambole que fazia. O teto da cozinha era um ripado para absorver a fumaça não recolhida pela chaminé. Uma vez, ao se fritar um bife, o fogo atingiu a gordura e labaredas varreram o teto de madeira. Por sorte, havia uma mangueira do lado de fora, pronta­mente usada para debelar as chamas.

Usava-se banha de porco para a fritura, pois os óleos vegetais ainda não eram populares. O açúcar era utilizado em abundância na confecção de doces. Minha mãe, exímia doceira, fazia um doce para a sobremesa do almoço e outro para a sobremesa do jantar. Não havia a menor preocupação em comer alimentos gordurosos, como o torresmo, a leitoa, as costelinhas de porco, suíno este que era cria­do para produzir muita banha. Só muitos anos depois, com avanços de engenharia genética, no porco priorizou-se a produção de carne, hoje das mais saudáveis.

As poucas revistas que circulavam, mostravam o uso de fogões elétricos nos Estados Unidos e Europa, prática impossível para nós, que sofríamos com falta de energia. O lampião Coleman, a querose­ne, reinava absoluto em parte da noite com eletricidade racionada.

O fogão a gás foi recebido com desconfiança. Não tinha a chapa de ferro que ficava quente o tempo todo, apressando o preparo da comi­da. Será que aquele móvel com três ou quatro bocas realmente substi­tuiria a fortaleza do fogão à lenha? E o botijão, será que não explodiria ou deixaria vazar gás maléfico para os moradores da casa? O forno de placas finas de ferro realmente assaria os bolos e quitutes?

A sua praticidade foi vencendo a desconfiança inicial e o fogão a gás passou a reinar absoluto, até hoje, nas cozinhas das casas. Prati­cidade também incentivou a introdução do liquidificador e, poste­riormente, do forno de microondas.

Estas lembranças, longe de serem saudosistas, dão-nos a certeza de que vivemos hoje muito melhor do que no passado. Nem a alegação de que o fogão a lenha dava uma sabor melhor à comida sobreviveu. Lembrar delas ajuda-nos a aproveitar o conforto que temos e a expectativa de que novos eletrodomésticos inteligentes ainda melhorarão mais a nossa casa.

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