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Homens e pássaros

Estivemos viajando pela Terra do Fogo e pela Patagônia argentina e chilena para conhecer melhor os povos vizinhos. Nós, brasileiros, vivemos muito mais próximos da Torre Eiffel do que da extraordinária geleira de Perito Moreno. A viagem foi realizada por indicação do juiz e professor argentino Ricardo Guibourg. Em El Calafate, fomos visitar os glaciares Upsalla e Perito Moreno.

Os estudiosos afirmam que esses glaciares datam de mais de 30 séculos antes de Cristo. O Upsalla é o maior da América Latina, abrangendo novecentos quilômetros quadrados de gelo. O Perito Moreno é o mais impressionante porque dele despre­gam blocos de gelo que fazem grande barulho ao cair na água. Parecem ter vida própria. Talvez tenham.

Glaciares são enormes corpos de neve que se derramam dos altos dos Andes até o vale mais próximo, quando então se convertem em lagos. Sobre e sob as águas do lago navegam ice­bergs. As águas e o gelo são brancos, mas tomam cores azuladas porque refratam os raios solares. Vemos o que não vemos. Na Península Valdez, os fazendeiros reservaram terras para a habi­tação de pingüins, lobos e leões marítimos. Um técnico afirmou­-me que as águas, pelas quais navegávamos, tinham temperatura muito abaixo de zero e que não congelavam porque são muito salgadas. A morte aguardava quem mergulhasse por ali.

A Terra do Fogo é uma ilha banhada pelo Canal de Beagle que tomou emprestado o nome dado pelo cientista Charles Da­rwin que por ali um dia passou estudando a história da matéria orgânica. Disseram-me que Beagle era o nome do cachorro do Darwin. Na ilha está a última cidade do mundo, Ushuaia, considerada a mais sulista do globo terrestre. Ali conhecemos o Mingo que nos guiou por aquelas veredas.

Ao lado está o Estreito de Magalhães, pelo qual passou o português Fernando de Magalhães para descobrir o caminho das Índias e do mundo r0navegando para o ocidente, rasgando mares desconhecidos e gelados. Com barcos sem motor!

Ushuaia é a capital da Terra do Fogo. A região foi colonizada no Século XIX pela Argentina. A colonização foi feita usan­do braços de presos condenados. Construíram ali uma prisão medonha e fria para onde eram remetidos bandidos comuns e prisioneiros políticos.

O mais famoso criminoso que ali cumpriu pena chamava-se Caetano Godino, o “Menino Orelhudo”, que ainda moleque especializou-se em assassinar crianças em Buenos Aires. Em 1927 os médicos lombrosianos concluíram que a sua ferocidade nascia das suas orelhas enormes. Arrancaram as orelhas do “Me­nino Orelhudo”. Na prisão o menino matava pequenos animais domésticos, como um gato lançado à fornalha. Apanhou tanto dos outros presos que acabou morrendo em 1944. O atestado médico atribuiu a “causa mortis” a uma hemorragia duodenal. O google registra a passagem do menino pela cadeia. A prisão foi fechada em 1947 por Perón.

O homem é muito pequeno frente à natureza formidável e aos horrores de sua convivência. Os homens e os pássaros? No mundo há muitos caminhos, tantos que é um não acabar. O poe­ta espanhol Antônio Machado deu uma receita: “caminhante, não há caminho; o caminho se faz andando”.

Pedi ao Mingo que me fornecesse uma frase para que pudes­se levar para o Brasil como um registro da civilização antártica.

A frase foi um dos grandes presentes que guardo ainda hoje: “se os homens não atirassem pedras, gostaria de ser pássaro; mas se os homens deixassem de atirar pedras, desejaria ser homem”.

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