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Cérbero e o funcionário público

Cérbero, segundo a mitologia grega, é o porteiro do inferno. Tão medonho que foge a qualquer descrição. O portão do inferno tem entrada, mas não tem saída. Ali está o Cérbero, para muitos, um cão com muitas cabeças, policiando todos os cantos.

Duas pessoas conseguiram entrar e sair do inferno. Hér­cules e Orfeu. Zeus queria ter certeza da monstruosidade do Cérbero. Mandou Hércules buscá-lo no inferno. Cérbero resistiu. Hércules arrastou Cérbero até Zeus que assim o conheceu e se encheu de enorme repugnância.

Outro foi Orfeu, que ao saber que a mulher amada tinha sido lançada para o reino das mortes, para lá foi com sua harpa, conseguindo emocionar até mesmo Cérbero com sua música. Assim trouxe Eurídice de volta à vida, sob a condição de não olhar para trás sob pena de voltar para o mundo dos mortos. Eurídice desobedeceu e perdeu a vida para sempre.

Num desses dias, eu espiava os estudantes ingressando no prédio do antigo Ginásio do Estado, em busca da aprovação do ENEM. Teria cabimento aproximar o ENEM com os rei­nos do Cérbero? Fiquei matutando. Tirando algumas coinci­dências, com certeza que não. No passado, passei várias vezes pelo portão do nosso Ginásio, do qual fui seu aluno. E toda vez que entrei e saí de lá não encontrei nenhum Cérbero com três, seis ou nove cabeças a correr atrás dos meus calcanhares. De lá trouxe uma Eurídice que também não olhou para trás.

Não tenho e nunca tive nem a força de Hércules e nem muito menos a música de Orfeu. Mas entrei e sai pelos portões sem muita dificuldade. Bem! Ali não estava Cérbero, o medonho, para lutar contra as minhas forças e nem para ouvir a ausência da minha música.

O diabo, com perdão da palavra, levou minha atenção para o funcionário anônimo que tomava conta do portão do Ginásio que, como é sabido e consabido, deve ser fechado às 13 horas, proibida a entrada de qualquer ser vivo ou mitológi­co durante a extensão das provas do ENEM.
Ao se aproximar das 13 horas, o porteiro do nosso Ginásio do Estado transmitiu para todos nós uma intensa e silenciosa emoção.

Toda aquela pequena multidão deitava seus olhos para aquele que trancaria a porta do Ginásio como Cérbero fechava a porta do inferno. Porém, muito ao contrário do horrendo ser mitológico, o nosso porteiro anônimo, com o peito cheio de humanidade, passou a andar de um lado para o outro, tentando enxergar para os lados da Igreja de São Bene­dito ou para os cantos de Santa Úrsula em busca de perceber a aproximação de um Hércules, ou talvez de um Orfeu, quem sabe de um Dionísio ou até mesmo de uma Eurídice que, per­dendo a hora, estariam impedidos de ingressar naqueles rei­nos. O porteiro andava apressado de um lado para o outro. O silêncio tornou-se grande. Mas todos olhavam para a porta.

Enorme era a preocupação do porteiro anônimo que paternalmente conseguiu atender a todos aqueles afobados estudantes antes que ele cumprisse o dever de cerrar as portas do inferno, perdão, do paraíso.

Ninguém bateu palmas com as mãos. A lição de solidarie­dade humana exercida anonimamente foi recebida por nós. Todos que ali estavam, emocionados com a intensa solida­riedade do porteiro anônimo, com certeza, tiveram vontade de tomar uma caneta e escrever a sua história, buscando na memória as suas raízes gregas.

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