Fabiano Ribeiro
Não é muito comum um jornalista escrever uma matéria em primeira pessoa. O fato deixa de ser imparcial. Torna-se praticamente uma opinião. Mas não encontrei outra maneira para passar adiante a entrevista que fizemos, eu e o repórter fotográfico JF Pimenta, com o artista plástico Paulo Camargo.
Paulo, natural de Anhembi, mas ribeirão-pretano há décadas, tem 75 anos. Ele não só aparenta ser, mas é uma pessoa simples, daquelas desprovidas de ganância. O bate papo foi em seu apartamento. A primeira impressão ao entrar nas dependências foi que não era um apartamento, mas sim um estúdio, um ateliê, um local de criação. Depois a impressão deu lugar para a certeza.
Um pequeno computador, vários discos e livros, um colchão e alguns objetos de uso diário. Isso, proporcionalmente dava uns 5% do espaço. O restante é ocupado por telas, quadros, gravuras, tintas.
O primeiro quadro que vi foi um trabalho ainda inacabado em um cavalete, na sala de entrada. Percebi que ali que Paulo criava suas obras. “Ah, esse é um que estou fazendo para vender. É uma gravura”, disse.
Fui entender o significado da frase mais adiante. A pequena gravura foi levada por ele e trocada por uma maior. Um homem enforcado. Impressionante. Pensei: – Como um quadro desses está escondido aqui? Como não está em algum museu?
“Esse eu fiz na morte do Wladmir Herzog” (jornalista vitimado pela ditadura). “O filho dele viu e queria levar embora. Não dei. Não vendo. Ele tem que ficar em um museu para que todos possam conhecer a história do Herzog e da ditadura”, disse.
Perguntei o nome do quadro. Paulo disse que não batizava as obras. “Não dou nomes. As pessoas têm que ver e sentir. Mas esse é do Herzog”, riu. “Cada quadro, cada obra tem uma história”.
Paulo foi mostrando outras obras e minha indignação não se resumia em porque o quadro do Herzog não estava em um museu, mas sim por que os outros não estavam. Por que, ele Paulo Camargo, não era reconhecido internacionalmente, apesar dele e sua obra serem muito respeitados.
Indignação com alfândega
“É acho que dá para fazer um museu com os trabalhos que tenho aqui”, disse. Percebi que esse era o desejo dele. Paulo mostrou um pacote que havia sido encaminhado por ele ao Museu e Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal, um dos mais famosos da Europa. Segundo ele, o pacote continha um pouco dos seus trabalhos e um projeto para fazer um painel que retratava a história do mundo. O projeto estava pronto. “Eu só queria o investimento para fazer a obra e um quarto para dormir, mas isso nem chegou lá. Eles abriram na alfândega e me devolveram. Um desrespeito”, disse mostrando o pacote adulterado.
Paulo mostrou outros projetos. Todos prontos aguardando incentivo cultural. Mostrou também um pouco de desconforto ao falar das exposições. “Faço com frequência. Mas percebi que o brasileiro não liga muito para cultura. Dias atrás fiz uma exposição no shopping e as pessoas passavam pelas telas e nem olhavam. Fiquei algumas horas e ninguém parou. É uma realidade”, constatou. “Eu sobrevivo com as telas comerciais que faço (referindo-se a que tinha visto na entrada do apartamento). Mas é só para pagar conta, comer e comprar tinta. Uso o dinheiro para comprar produtos e produzir outras telas não comerciais”, revela.
Obras ameaçadas
Outra preocupação mostrada é com o futuro da vasta obra que têm no apartamento. A moradia foi cedida a ele, mas o proprietário está em litígio com a financiadora e ele corre o risco de ser despejado do imóvel. “Eu não ligo, me viro. Mas e essas obras para onde vão?”. “Eles falam que o artista fica reconhecido quando morre, mas eu só vou morrer quando eu colocar essas obras em um grande museu. Quando terminar as outras telas”, finaliza.
Nasci para ser pintor
Paulo Camargo disse que nasceu para ser pintor. Que nunca pensou em fazer outra coisa na vida. “Nunca me preocupei com as disciplinas na escola, como matemática. Eu não queria estudar, sabia que seria pintor, por que me interessaria por outras coisas. Me interessava por pinturas e obras de arte. Um dia na escola a professora perguntou o que as crianças queriam ser. Eu tinha oito anos e já sabia. Eu ia ser pintor. Falei com certeza para ela”.
O artista ainda tem o primeiro estojo que ganhou com tintas, aos onze anos. “Foi com isso que produzi minhas primeiras telas. Ainda tem tinta eu usava pouco para durar”, diz, mostrando o presente de infância.
Técnica descoberta por acaso
As principais telas de Paulo Camargo são produzidas dentro de uma técnica descoberta por ele, por acaso: tinta e serragem. A mistura proporciona telas com texturas diferentes e grande resistência.
“Um dia eu estava pintando e caiu tinta em um pouco de serragem no chão. Sem querer foi parar na tela e eu percebi um efeito diferente. Comecei a trabalhar e desenvolvi”, conta. “Foram oito anos mais ou menos fazendo experiência até chegar a um ponto bom”.
Prestes e convite para a Europa
A tela de Wladmir Herzog e outras tantas dele têm algo em comum: retratam e expões problemas sociais. Elas mostram o lado político de Paulo Camargo. Ele conta dois episódios que mostram bem esse posicionamento.
Um deles foi trazer a Ribeirão Preto o então líder comunista Luís Carlos Prestes. “Quando o Prestes desembarcou no Brasil eu fui lá buscá-lo. Eu o trouxe a Ribeirão”, conta. “Depois disso fui visto com outros olhares. Me despejaram de onde eu morava. Fui morar por um tempo no mato e depois na rua”, conta sem entrar em detalhes, mas deixando a entender que sofreu algum tipo de perseguição.
Paulo também mostra um trabalho que fez e foi utilizado pela People’s Mujahedin of Iran, uma organização de oposição ao governo do Irã existente antes da Revolução Iraniana de 1979 (existe até hoje). Em 1976, mais de 40 mil pôsteres com uma ilustração de Paulo Camargo foram vendidos na Europa pela organização com o objetivo de angariar fundos para ajudar pessoas feridas na guerra. “Eles queriam me levar para a Europa, para o Mujahedin. Eu não quis ir não. Entre ficar na guerra lá ou aqui, preferi ficar aqui mesmo”.