O corpo do cantor e compositor João Gilberto foi sepultado na tarde desta segunda-feira, 8 de julho, no Cemitério Parque da Colina, em Niterói, cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O velório foi aberto ao público, no Theatro Municipal da capital fluminense, e reuniu milhares de fãs de um dos pais da bossa nova depois de uma cerimônia restrita a parentes e amigos. As pessoas puderam passar perto do caixão, mas sem permanecer no local.
O velório permaneceu aberto ao público até as 14 horas. Por volta de 13h30 teve missa e apresentação musical. O criador da bossa nova morreu em casa, no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, na tarde de sábado, dia 6, aos 88 anos. A causa da morte não foi divulgada. Muitos fãs foram ao velório para dar um último adeus ao ídolo, como a médica Fernanda Maia Carvalho. Natural de Fortaleza (CE) e em viagem de turismo, ela disse que soube da morte do cantor quando estava visitando o Pão de Açúcar.
Muito emocionada, resolveu programar a homenagem a João Gilberto com os três filhos pequenos. “Meus pais são grandes fãs dele, eu cresci ouvindo as músicas dele, sempre me inspiraram pra um monte de coisa boa que aconteceu nas nossas vidas. É um momento muito emocionante pra nós. Certamente a música de João Gilberto atravessa gerações e continuará encantando. A grande mensagem da música é essa, ela é eterna”. A imprensa não pôde entrar no hall do teatro. Ao lado dele, permaneceram a esposa, Maria do Céu Harris, de 55 anos, e a filha, a cantora Bebel Gilberto, de 53.
A voz e o violão mais importantes da música brasileira, criador da bossa nova, fundador do pensamento musical moderno no País e inspirador de uma geração que só iria tocar algum instrumento e se encorajar a cantar com a voz que tinha (e não com a voz dos cantores do rádio) porque o ouviu sussurrando “Chega de Saudade” em 1959, João Gilberto se foi no sábado, aos 88 anos.
Tinha problemas de saúde, que não eram poucos, mas seu orgulho em dizer aos mais próximos, como Caetano, que jamais havia pisado em um hospital o impedia de fazer todos os exames que devia fazer. Deixou três filhos, João Marcelo, Bebel e Luisa, e um sem número de afilhados, como são considerados criadores e cantores que vieram logo depois de sua geração, como Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo e Francis Hime.
“Meu pai morreu. Sua luta foi nobre, ele tentou manter a dignidade à luz da perda da independência. Agradeço minha família por estar aqui por ele”, escreveu primeiro o filho do cantor, João Marcelo, que mora nos Estados Unidos. Seu estado de saúde teria piorado desde a morte da ex-mulher, Miúcha, em dezembro de 2018, com quem foi casado e teve a filha Bebel. Ele chegou a pesar 40 quilos.
João Gilberto era o próprio violão. Calado para o mundo, falante consigo mesmo, percutia as ideias musicais em sua caixa de ressonância de forma que só quem estivesse próximo, na sala de seu apartamento, pudesse ouvi-las. Na vida em monastério que adotou há décadas, seguia invisível, abrindo a porta de seu apartamento apenas para poucos, como Bebel.
João nunca esteve pronto para se tornar um gigante, e morreu sem entender o que era isso. Menino de Juazeiro da Bahia, onde nasceu em 10 de junho de 1931, nadou nas águas do São Francisco e beijou garotas da vizinha Petrolina. Seus amigos começaram a contestar sua sanidade mental no dia em que João avistou um caminhão vindo por uma estrada que cruzava a cidade.
Como se recitasse uma oração, disse baixinho: “Veja lá aquele caminhão, que maravilha. Olha como as árvores da estrada acariciam sua cabeça.” Árvores, pássaros, chuva, tudo parecia mais importante do que os homens e despertavam não a loucura, mas uma sensibilidade sobrenatural.
Filho do comerciante Juveniano Domingos de Oliveira e da católica Martinha do Prado Pereira de Oliveira, a Patu, João viveu em terras juazeirenses até 1942, aos 11 anos, quando seguiu para estudar em Aracaju. Juazeiro ainda o teria de volta quatro anos depois, quando o violão que o pai lhe deu começou a ganhar as primeiras carícias. A Rádio Nacional lhe trazia o mundo e João flutuava ao som de Orlando Silva, Dorival Caymmi, Chet Baker, Carmen Miranda. O primeiro grupo, Enamorados do Ritmo, veio logo, e Juazeiro ficou pequena.
A cidade que o recebeu na sequência teria sério papel na formação de seu caráter artístico. Aos 18 anos, em Salvador, já trabalhava com carteira assinada na Rádio Sociedade da Bahia. Não havia ainda desenhado o formato voz e violão, mas seguia os mandamentos de Orlando Silva tentado imitá-lo, por mais que o moderno já fossem Dick Farney e Lúcio Alves. O grupo vocal Garotos da Lua o chamou e lá se foi, gravar dois discos 78 rotações.
O Rio de Janeiro fervia na segunda metade dos anos 50, e foi para lá que João seguiu, aos 26 anos, em 1957. Sem recursos, seguia a trilha de quem queria ser alguém com um violão sob o braço. Cantou para quem poderia lhe fazer diferença, como Tito Madi, mas teve mais sorte ao cair nas graças do produtor Roberto Menescal.
O violão de João virava a vedete. “Bim Bom”, uma das primeiras que apresentou aos círculos de jovens músicos no Rio, já trazia elementos de novidade. A levada uniforme deslocando acentos fortes para lugares incomuns, a harmonia sugerindo caminhos pelos quais ninguém passava, a mão que fazia acordes fazendo também percussão. E a voz. A voz de João deixava as tentativas da impostação e partia para o naturalismo de Chet Baker quando cantava. Volume baixo e notas de longa duração, limpas, sem vibrato. Depois de acreditar no violão, João passava a ter fé no fio da própria voz.
E, então, fez-se a bossa nova. Era julho de 1958 quando Elizeth Cardoso apareceu com o disco “Canção do amor demais”, com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ao violão, em duas das faixas, “Chega de Saudade” e “Outra Vez, João Gilberto”. Era só a ponta da cabeça de um baiano que se revelaria por inteiro um mês depois. Em agosto, João, já uma aposta de Tom Jobim, Dorival Caymmi e Aloysio de Oliveira, grava seu próprio 78 rotações com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, pela Odeon.
O que João fez, diminuindo as frequências da voz e do violão ao mesmo tempo em que estendia a harmonia, criou uma linguagem brasileira e, sobre ela, um novo gênero. Seguiu na formatação de sua proposta com “Desafinado”, de Tom e Newton Mendonça, e “Hô-bá-lá”-lá, de sua autoria. “Chega de Saudade” já o havia definido como um acontecimento. “Em pouquíssimo tempo, (João) influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”, escreveu Tom Jobim na contracapa do disco de 1959. Sessenta anos depois, não chegamos ainda ao tempo em que ele viveu.
Artistas, parentes, amigos e personalidades lamentam
O cantor e compositor João Gilberto, um dos criadores da bossa nova, morreu no sábado, 6 de julho, no Rio de Janeiro. A morte foi anunciada por seu filho João Marcelo Gilberto, pelas redes sociais. Artistas, personalidades e familiares do cantor e compositor que revolucionou a música popular brasileira se manifestaram pelas redes. Sofia Gilberto Oliveira, neta do cantor, escreveu: “Meu amado vovô virou uma estrelinha, a estrela mais brilhante do céu”.
Ela ainda acrescentou: “Meu vovô foi o vovô mais amoroso e carinhoso que eu podia ter tido, pedia pra eu ir pra lá todos os dias e quando estava tarde da noite e já estava na hora de eu ir embora, depois de eu já ter passado o dia todo com ele, falava: “Mas já vai? Dorme aqui..!” Comia pra ficar forte pra brincar comigo. Me dizia sempre que eu era grande e que todo mundo ia gostar de mim. Foi carinhoso não só comigo, mas com meu pai e minhas irmãs, pedia sempre pra Alice ir comigo e adorava ficar de mãos dadas com ela conversando. Amo ele demais e vai estar sempre no meu coração e na minha vida.”
Adriana Magalhães Oliveira, mãe de Sofia, também lamentou a morte de João Gilberto: “Tristeza, tristeza, profunda tristeza. Tudo que ele queria era estar aqui conosco e brincando com sua netinha, nos pedia isso todos os dias, uma coisa muito simples, momentos felizes que foram negados a ele.” A cantora Gal Costa, um dos ícones da MPB, afirmou: “Se foi João Gilberto o maior gênio da música brasileira. Influência definitiva no meu canto. Fará muita falta mas seu legado é importantíssimo para o Brasil e para o mundo.”
A também cantora Daniela Mercury escreveu em suas redes sociais: “Vai minha tristeza e diz a ele que sem ele não pode ser”, citando “Chega de Saudade”, um dos clássicos eternizados na voz de João Gilberto. Ela acrescentou ainda: “Um gênio que revolucionou para sempre a música popular brasileira. João criou a bossa nova e me influenciou imensamente. Um dia ele me disse que eu era de sua família. E sou mesmo. Ele ensinou todos nós a cantar da forma mais bela do mundo. Vá em paz, mestre!”
João Máximo, escritor e jornalista, afirmou em entrevista ao canal de televisão GloboNews: “A bossa nova surge com ele porque ele é um gênio, no violão, principalmente. O João Gilberto sai do Rio de Janeiro cantando de uma maneira, influenciado por Orlando Silva, sai tocando violão aparentemente comum e, quando volta, ele volta com novo violão e nova maneira de cantar que não se sabe ao certo como ele descobriu. Essa nova maneira é que vai levar a música popular brasileira ao exterior”.
“A Carmem Miranda levou a personalidade dela, uma personalidade bizarra, mas a música não foi com ela. Ao contrário do João Gilberto. Ele transforma a música popular brasileira em algo mais digerível para o músico e para o americano. Ele tem essa importância, além de ser um gênio, porque o cara que descobre isso sozinho, trancado no banheiro (é essa história que se conta), é um gênio “
A escritora e roteirista de novelas Glória Perez, afirmou em seu Twitter: “Sábado triste: morreu João Gilberto, o pai da bossa nova.” O cantor Roger Moreira, da banda Ultraje a Rigor, também externou seu pesar: “Morreu João Gilberto. Uma pena.” O crítico musical Rodrigo Faour lamentou: “Talvez um dia o Brasil entenda quem foi o João Gilberto. Seja como for, sua semente rendeu árvores, galhos, flores, frutos e novas sementes pelos quatro cantos do mundo nos mais variados estilos musicais. Sua batida diferente, seu jeito de cantar, de dividir, usar o microfone, sua forma de gravar e o perfeccionismo à beira do absurdo… tudo em prol da música mais suave e pura em sua essência. Viva João e sua bossa sempre nova.”
Ana de Holanda relembrou diversos episódios e afirmou: “Ele cantava, tocava e fazia a gente cantar. Para mim algumas dicas foram fundamentais para entender o canto, a emissão do som e a intenção do que está sendo dito. Entendi naquela época o quanto cantar – mas cantar direito – é um privilégio.”