“Que farei de Jesus que chamam de Cristo?”. Todos responderam: “Seja crucificado”. Tornou a dizer-lhe: “Mas que mal ele fez?”. Eles, porém, gritaram com mais veemência: “Seja crucificado” (Mateus.27)
O primeiro julgamento que pode diariamente ser comentado, durante séculos, é o de Jesus Cristo, acontecido há mais de dois mil anos. Nele a turba, sedenta e faminta, gritava pela morte daquele homem seminal do qual floresceu uma religião longeva de história, crença e fé.
Ela seguiu, em êxtase assassino, o cortejo da cruz carregada, com aquele homem sofrendo cada lambada do chicote soldadesco. Era um dia de festa, na qual o governador, costumeiramente, soltava um preso escolhido pela multidão. Naquele o presenteado foi Barrabás.
Nasceu ali uma fonte de amor que irradiaria, veio junto a simbologia da tortura, da humilhação e do achincalhe, que os tempos futuros repetiriam, atualizando métodos, muitos requintados. E o gesto covarde de seu julgador também, nos tempos atuais, teve sua atualização, através do palavrório dissimulador de violência, que com sua narrativa de zigue-zague não se envergonha de driblar a lei escrita, que um dia foi concebido como limite da atuação do Estado.
A Cesar o que é de Cesar, a Deus o que é Deus penetrou na estrutura do Império Romano, tirando sua solidez e conduzindo-o à perdição. Por outros motivos, caíram impérios e tantos Estados. Afinal. “tudo que é sólido desmancha no ar”, simplesmente, porque a lei da vida incrustada na natureza das coisas e das pessoas está entre os dois polos – o de nascer e o de morrer.
Para muitos, nasceu do humanismo cristão a noção esplendorosa da dignidade da pessoa. Para outros, a configuração desse conceito resultou do avanço histórico da civilização. Seja por um, seja por outro, a convergência é da dignidade que emana da própria natureza do humano, introduzindo o sagrado do humano, que coloca o homem ou a mulher na centralidade do mundo e do universo.
Com esse longo e milenar tempo de reflexão e de debate, mais de dois mil anos, não foi suficiente para entrar, no espírito, na consciência e na alma de todos. Surpreende essa carência em muitos homens e mulheres, que assumiram a toga como um sinal da profissão escolhida, aplicando a lei e esforçando-se para chegar ao cume da imparcialidade do julgador. Uma plenitude difícil porque todos estão envoltos por circunstancias de uma vida inteira, com interesses variados, que subliminarmente se expressam em sentenças, até absurdas, e em declarações públicas, que denunciam sua submissão à turba moderna, eriçada pelos atos oficiais de senhores das leis, que não se contém nos limites de sua ética e de sua obrigação funcional.
Esses homens das leis subvertem impunimente a hierarquia a qual pertencem, querem fazer de seu local de trabalho outro Tribunal Superior, pretendendo até trazer para sua competência de julgador individual processos que pertenceriam a outro local.
A turba moderna é incentivada pela tática de fazê-la acreditar de seu mérito corajoso de julgador ou de acusador, sem perceber o próprio disfarce de um palavrório estimulador do ódio, da indignação e da fúria. Será por vaidade? Será para entrar no palco das pretensões políticas? Será por capricho? Serão traumas da infância, que fazem com que se esqueçam da equidistância dos fatos e da verdade, para serem conduzidos, na função, pela pessoa julgada?
Um jovem advogado, um dia, assumiu como verdade sua o que o acompanhou durante toda vida – a compreensão da lei é antes a compreensão do juiz, a rigidez da lei é antes a rigidez do promotor, o entusiasmo da lei é antes a devoção do advogado. Assim a justiça é o que é o homem ou a mulher que a serve.
Os homens ou mulheres julgam os homens, e se a centralidade do mundo e do universo é o homem, e se a dignidade da pessoa é uma imposição ética irrevogável, os agentes da lei que a violem sob o pretexto de cumpri-la não se pode deixar de pensar no tamanho do abuso, depois de mais de dois mil anos. E quando punição não há, tem-se o direito de imaginar o que não se quer, mas que se pode: o crime com o disfarce da toga.