Por Rodrigo Fonseca
Após um périplo pelo mundo na forma de 200 filmes, dos mais variados países, formatos e idiomas, adotando o espanhol Pedro Almodóvar como seu favorito à Palma de Ouro, à força dos encantos de Dor e glória, o 72º Festival de Cannes chega ao fim neste sábado, após uma noite em que festejou os 50 anos de carreira do Rei Midas do cinema de ação de Hollywood: Sylvester Stallone. Em 1993, ele passou pela cidade com Risco total, thriller de alpinismo que repaginou sua imagem.
Agora, ovacionado com gritos de “Bravo!”, o ítalo-americano de 72 anos veio exibir cenas inéditas de Rambo: Last blood, que lança em setembro, retomando a figura do ex-combatente do Vietnã responsável por ampliar a popularidade que ele começou a construir após o Oscar de melhor filme dado a Rocky, um lutador (1976). De quebra, trouxe à Croisette uma cópia digital inédita de Rambo – Programado para matar (1982).
“Muita gente fala de Rocky e Rambo, mas eu tenho muito carinho por ‘Stallone Cobra’, cujo personagem é uma espécie de Bruce Springsteen com um distintivo. Ele fez muito sucesso à época e eu penso até hoje que poderiam fazer uma série com Cobra e sua força policial, o Esquadrão Zumbi, só que sem mim, que já não tenho mais idade para ele”, disse o ator ao jornal O Estado de S. Paulo, esbanjando bom humor.
Contando anedotas (“um dia o Schwarzenegger veio dizer que eu tenho sotaque falando… logo ele”) e disparando frases motivacionais (“você nunca pode baixar a guarda e deixar de socar os desafios”), Stallone foi tratado por Cannes, na conversa conduzida pelo crítico Didier Allouch, como um multiartista de verve autoral. De fato, desde 1978, quando filmou “A Taverna do Inferno”, ele dirige, roteiriza e produz. “Eu já fiz muito filme ruim, na entressafra entre projetos grandes que os estúdios armavam pra gente com muita antecedência Às vezes, a minha filha mais nova vê algo ruim que fiz na TV e me sacaneia: ‘Pai, como você emabracou numa m… dessas’. E eu digo: ‘Bom, eu precisava pagar seus estudos, né?”.
No novo Rambo, dirigido por Adrian Grunberg, ele vai combater traficantes de um cartel do México, levando uma vida reclusa no rancho de sua família. “Embora tenha essa pequenina fazenda no interior dos EUA, ele vive em um esconderijo subterrâneo, parecido com os buracos em que precisou se esconder no Vietnã. É um homem com uma alma sombria”, antecipou Stallone, garantindo que depois de Creed II não vai fazer um novo filme da série Rocky Balboa. “Meus planos iniciais, nos anos 1970, quando filmamos ‘Rocky, um lutador’, em 29 dias, em 1976, era parar a série no terceiro filme. Mas havia mais coisa a ser contada. Quero parar agora. Tive até uma boa ideia, de fazer Rocky treinar um refugiado que quer ser pugilista. Mas não vai rolar”.
Allouch chegou a levantar a hipótese de que um Rocky em prol de imigrantes poderia irritar o presidente Donald Trump, mas Stallone logo cortou a provocação: “Não sou um animal político e nem tento fazer tratados sobre Poder nos meus filmes. Quando Reagan chamou Rambo de republicano, eu percebi que tinha um problemão nas mãos”, disse o astro, que sonha dirigir uma cinebiografia do poeta Edgar Allan Poe.
Apesar da badalação em torno de Dor e glória, a premiação de Cannes, esta tarde (14h, no horário do Brasil), sob o comando do diretor mexicano Alejando González Iñárritu (“Birdman”) não deve esquecer os dois longas-metragens brasileiros lá exibidos. Concorreram O traidor, uma coprodução com a Itália, dirigido por Marco Bellocchio, e Bacurau, thriller com CEP pernambucano dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (que compareceu à homenagem à Stallone).
Também não devem ser esquecidos os novos filmes de Justine Trier (Sibyl), Céline Sciamma (Portrait de um jeune fille em feu), Bong Joon Ho (Parasite) e Ken Loach (Sorry, we missed you). Quentin Tarantino rachou opiniões aqui com sua recriação de 1969 em Era uma vez em Hollywood, mas pode sair com o Grande Prêmio do Júri (a láurea mais cobiçada depois da Palma) por sua ousadia O mesmo pode acontecer com o tunisiano Abdellatif Kechiche e seu “Metoube, my love: Intermezzo”, sobre a juventude mediterrânea dos anos 1990.
Há uma torcida forte aqui também em prol de possíveis láureas para dois diretores franceses de origem africana, ambos negros, na competição: Mati Diop, realizadora de Atlantique, e Ladj Ly, que assina Les Misérables.
Primeira mulher negra a disputar a Palma, Mati construiu uma história de amor (cheia de diálogos poéticos) sobre uma jovem de Dakar que sonha rever o namorado, antes de embarcar num casamento arranjado. Já Ly, cujos parentes são do Mali, filma os subúrbios de Paris a partir de uma trama sobre um trio de policiais que provocam um conflito com moradores de periferia após ferirem um menino que roubou um filhote de leão de um circo de ciganos.
No bonde do que Cannes viu de mais fraco, em concurso, entram Arnaud Desplechin (com o tedioso Roubaix, une lumière), Xavier Dolan (com Matthias et Maxime) e Jim Jarmusch (The dead don’t die). Mas, como saber de Iñarritu e seus pares não embarcaram nas escolhas estéticas que fizeram a crítica torcer o nariz? Só na hora e na vez da premiação.