Bastou dar uma esfriada para que eu abrir a gaveta da memória. Aí eu dano a pensar nessa estação do ano da qual não gosto nem a pau. Ela me faz lembrar de minha dura infância, quando morávamos na rua Santo Amaro nº 312, Vila Amélia, ali na grande Vila Tibério. A casa não tinha forro, entrava um ar gelado pelas frestas do telhado e a coberta não aquecia. Hoje, quando me lembro desta época, penso que os anjos aqueciam nossa numerosa família de um inverno que atualmente é bem mais ameno.
Sempre brinco com os amigos dizendo: “Não me convidem para passeios em lugares frios, não vou nem com despesas pagas”. Lembranças me levam também para meu tempo de policial rodoviário. O rigoroso inverno nas estradas é algo que só quem viveu pode dar um pitaco. A gente ficava alim no acostamento, naquela imensidão do interior, que as carretas, os ônibus ou qualquer veículo de grande porte passava, sofríamos muito com o deslocamento de ar gelado que produziam.
A noite mais fria da minha vida como policial rodoviário passei na Base Operacional de Brodowski. Meu parceiro era o Francesqui. Ao entrarmos em serviço. Às 19 horas, o frio já estava de arrepiar, então ele sugeriu que eu fosse até um posto de combustível comprar uns 20 litros de álcool pra gente botar fogo para quando “a coisa” ficasse mais gelada. Foi uma noite tão fria, mas tão fria, que o trânsito na rodovia estava muito aquém de dias normais, tanto que nem precisei sair com a viatura pra nada.
Só sei que quando amanheceu, olhamos em volta da base e era gelo só, tudo branquinho.. Daquela fumacinha saindo do gramado encoberto jamais vou me esquecer. Cheguei em casa, voei pra cama me cobri com vários cobertores, mas o corpo demorou muito pra aquecer. É por essas e outras que não gosto de frio.
Quem também não gostava de frio era o Sócrates. Em muitas oportunidades ele comentou comigo sobre sua temporada em Florença, na Itália. Disse que o frio de lá o fez sofrer muito, e quando vinha de férias pra nossa calorosa Ribeirão Preto, cidade amada por ele, ao entrar no avião pra voltar, seu coração pedia pra não ir, mas o dever o obrigava.
Ele comentava também de quando perdeu as dez unhas dos pés jogando naqueles campos gelados. A região onde atuava era cheia de gelo, disse que enrolava jornais e plásticos nos pés, mas que essa medida pouco ajudava. Muitas vezes ele se perguntava: “O que estou fazendo aqui?”
Certa vez, ele estava beirando os 50 anos, um time do norte da Inglaterra fez uma pesquisa sobre nomes de jogadores de expressão mundial que já tivessem parado para promover o clube, e Sócrates foi o mais votado. E lá foi Magrão. Depois de muita negociação, ao nos despedirmos ele falou: “Buenão, não sei se vou agüentar, cara, essa região é fria pra dedéu”.
Não nos falamos mais, até que ele voltou e passou a contar sua mais nova aventura. Disse que às duas da tarde lá já era noite fria que vou te contar, mas tudo compensava com o tratamento que lhe foi dispensado. Comentava: “Buenão, olha quantos anos faz que parei de jogar e naquela fria região do mundo ainda sou lembrado com tanto carinho. Fiquei de cara, minha função era promover o clube e foi demais, onde eles me levavam iam também dezenas de jornalistas e TVs, entrava em campo, dava uns toques na bola, principalmente de calcanhar, a galera vibrava, foi muito gratificante.”
Sócrates ganhou cinco abrigos azuis do time, daqueles para inverno rigoroso mesmo, todos trazem o nome do clube. Ele me presenteou com um, uso todos os anos, hoje mesmo abri minha gaveta, apanhei meu abrigo e com carinho escrevo lembrando de meu querido amigo. Sexta conto mais.