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Amigos são amigos

Amigo é amigo e ponto final. Conheço tantas histórias de amizades que, quando alguma delas bate à porta da minha memória, tento colocar ligeiro no papel. Recebi nesta semana, no Facebook, uma postagem e fui me envolvendo na leitura. Quando dei por mim, me vi ali, entre as linhas escritas, vagando sobre as letras. Era uma carta que o saudoso Dorival Caymmi (1914-2008) escreveu em 30 de setembro de 1976, há mais de 40 anos, em Salvador (BA) para seu amigo e padrinho, o também baiano e saudoso Jorge Amado (1912-2001), escritor, autor de “Gabriela, Cravo e Canela”, que temporariamente estava morando em Londres.

A carta é repleta de ternura – há saudade em cada frase –, Caymmi diz não entender como ficar tanto tempo longe do afilhado numa gelada Londres e até faz um pedido para o amigo: quando retornar, que lhe traga um pano africano de muitas cores para fazer uma túnica. Ainda diz que vai “arrasar” quando usar a vestimenta – posso até imaginar o sorriso largo do Caymmi. Ele também diz –olha só essa – que anda meio sem tempo. Aí é demais, pois ele não fazia nada a não ser compor. No meio musi­cal, o buchicho é de que ele demorou 22 anos pra compor “João Valentão”.

Caymmi ainda confessa para seu padrinho que demora pra compor pra não fazer essas porcariadas que o rádio toca. Ele tinha razão, é assim até hoje. Pra justificar sua falta de tempo, Caymmi passou a descrever sua rotina. Fico imaginando ele rindo e escrevendo… Diz na carta que, no dia anterior, saiu com Carybé, este um artista plástico que consegue colocar cores maravilhosas em seus quadros – por ser seu fã, tentei nos meus quadros descobrir como ele misturava tintas tirando o seu me­lhor para colorir suas telas.

Pois bem… os dois subindo a ladeira do Mercadão, que deve ser o Mercado Modelo, ele e Carybé ficaram deslumbrados com tantos tons azuis que observavam por onde passavam. Contaram mais de 15. Artista é assim, enxerga com os olhos da alma. Che­gando em casa, Caymmi diz ter pintado um quadro maravilhoso e, pra brincar, emenda dizendo que Carybé até ficou enciumado. A tela era uma baiana e suas roupas cheia de cores – e ele abusou nos azuis. Lógico que a carta era para cutucar o amigo distante na esperança de fazê-lo voltar pra sua Bahia.

Caymmi continua sua carta ainda justificando sua vontade de não fazer nada e achar tempo pra isso (hehehehe). Segun­do sua escrita, todo dia ele ia visitar Dona Menininha, a mais famosa mãe de santo da Bahia, depois ia saudar Xangô, e segue sua caminhada passando pra conversar com o amigo Mirabeau, todos amigos também de Jorge Amado. Mas, segundo Caymmi, a maior parte do dia tirava para ouvir Carybé contar mentiras.

Que carta linda esta, gostaria que todos meus amigos pudes­sem ter acesso a ela. Poxa, é aquela relação de amigos que quase não se vê nos dias de hoje, quem sabe porque naquele tempo escrevia-se cartas. Caymmi continua contando que saiu dias pas­sados com Carybé e Camafeu. Eles perguntavam: “Por que nosso irmãozinho não está aqui? Aquela Lua de Londres, segundo um poeta lusitano é merencória e a daqui é aquela Lua”. até xingaram o amigo na brincadeira. Continuou: “Sabe, padrinho, constru­íram um prédio horrível acima da minha casa e propagaram: ‘Venha ser vizinho de Dorival Caymmi!’. Fiquei retado, vendi e comprei um apartamento.”

Diz ainda ao padrinho: “Como você sabe, meu irmãozinho, as músicas que compus com nomes de mulheres, como ‘Dora’, ‘Rosa Morena’, ‘Adalgisa’, ‘Anália’, todas foram pra uma só mulher, a minha Stela que você abençoou quando nos casamos. Peço sua benção, dê um beijo na Zélia, não esqueça do meu pano africano e volte logo, sua casa é aqui e eu sou teu irmão.” Caymmi.

Que lindeza de amizade!

Sexta conto mais.

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