Veja você esta história contada por um músico carioca das antigas. Numa loja de instrumentos, no Centro do Rio de Janeiro antigo, um menino muito pobre, sempre que passava por lá, olhava admirado os instrumentos de sopro. O proprietário já estava acostumado. Um dia, o menino pediu se poderia segurar nas mãos o trombone de vara, e o dono não só deixou como lhe deu de presente. Algo tocou seu coração, ele nem imaginava que este menino viria ser um dos maiores trombonistas do mundo: Raul de Barros.
O músico contou mais. Disse que, após um show, um amigo de Raul de Barros, já famoso internacionalmente, ia se casar, convidou-o para a cerimônia e perguntou: “Raul, será que nesta data você vai poder ir?” Raul consultou sua agenda de shows e respondeu ao velho amigo: “Não só vou, como vou compor uma música pra você”. O cara achou o máximo.
O tempo passou e Raul esqueceu do compromisso. Quando seu telefone tocou, era o noivo já na igreja cobrando sua presença. Ele disse: “Atrase um pouco que em minutos estarei aí”. Agora, imagine você sendo um taxista que recebe uma ligação para uma corrida, chega ao bangalô do solicitante e, de repente, entra em seu táxi nada mais, nada menos que Raul de Barros, considerado o rei das gafieiras brasileiras, queridíssimo por seu talento e também por ter tocado até com Sergio Mendes em terras do Tio Sam.
Raul entrou no carro abotoando a camisa de linho branquinha e muito bem passada. Meio que sem jeito, tenta proteger, debaixo do braço, um reluzente trombone e diz: “Toca voando pra Igreja da Glória que estou atrasado pra um casamento.” Lá foi o taxista descendo a lenha em seu carro e o músico no banco de trás, escorregando pra lá e pra cá pelas sinuosas curvas das ruas do Centro antigo do Rio de Janeiro, caminho da famosa igreja que fica no bairro da Gloria.
O motorista não entendia nada o que estava acontecendo, mas estava adorando aquele momento vivido por ele, ficava só na escuta do som delicioso do trombone de vara que o artista tocava. Pra quem não sabe, é aquele instrumento de sopro que o músico tira a nota musical esticando e voltando como se fosse uma vara, daí o nome.
A música o motorista não conhecia, também pudera, era inédita, o músico estava compondo-a naquele momento. Entre solavancos fazia anotações numa improvisada partitura, tinha que terminá-la até sua chegada na igreja. Dentro daquel táxi, Raul compôs uma das músicas instrumentais mais tocadas no Brasil, se tem letra eu não sei, só sei que se chama “Na Glória”, homenagem à igreja do casório do amigo.
Você que sempre lê minhas crônicas aqui no nosso Jornal Tribuna, na certa já ouviu este samba, até porque quando os músicos o estão executando, eles repetem em coro várias vezes “Na Glória”. Raul de Barros morreu em Itaboraí, interior do Rio de Janeiro, pobre, esquecido e passando dificuldades como a maioria dos músicos brasileiros.
Quase ninguém sabe que é dele a música mais linda da Seleção Brasileira de 1970, compôs em minutos dentro de um estúdio “Pra frente Brasil”, aquela que diz “90 milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração”. Na hora de registrá -la, colocaram só o nome de quem fez a letra, “Miguel Gustavo”. Missão cumprida, mestre Raul de Barros, tá registrado aqui que a música é sua.
Sexta conto mais.