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O ronco do defunto

Eu, aos 23 anos, passava por uma fase de muitos concur­sos quando decidi prestar mais um para entrar na Polícia Ro­doviária do Estado de São Paulo. Era muito difícil na época pois as vagas eram limitadas, precisava ter mais de 1,70 metro de altura e eu tinha 1,77 m. Além disso, exigiam o colegial completo – o atual ensino médio. Até aí, beleza. Ficha super limpa e entre mais algumas exigências tinha de ser motorista profissional. Estava nos trinques e lá fui eu.

Meu velho pai torcia muito por mim e antes de partir para Taubaté, ele me falou com seu jeito simples: “Escute aqui, ô caboclo. Você já pensou quando tiver que pôr as mãos em um defunto? Você vai chegar num desastre (era assim que ele falava) e tirar o morto todo quebrado, cheio de sangue das ferragens do carro ou caminhão?” E continuou: “Lembra quando o trem atro­pelou aquela mulher e você ficou dias sem comer, dizendo que o cheiro do sangue dela não saía de seu pensamento?” Eu estava tão empolgado que só lembro de ter dito: “Pai, vai acontecer e tenho que me preparar pra este momento”.

E este momento chegou. Eu, recém-formado, estava de auxiliar de um policial mais antigo patrulhando a Rodovia Anhanguera. Era dezembro, chovia demais naquela região entre Jundiaí e São Paulo. Quem já passou ou passa por ali sabe que aquele trecho é cheio de curvas, uma atrás da outra. Estávamos almoçando na base do quilômetro 37 quando chegou a notícia de um acidente, com um morto na pista. Meu parceiro disse: “Buenão, vamos embrulhar nossos pratos de comida num jornal, guardar no forninho do fogão e pau na máquina”.

Ele estava ao volante e disse: “Buenão, você já viu acidente com morte?” Respondi que seria o primeiro e ele, me dan­do aquela força, falou: “Também tive minha primeira vez e quando cheguei ao local, rezei um Pai Nosso pela alma do defunto, me fez muito bem, faça o mesmo”.

Assim que chegamos, sinalizei tudo, desviei o trânsito e che­guei perto do defunto. Digo que a cena era horripilante, foi meu batismo em acidentes. O corpo do motorista foi projetado pelo para-brisa, caindo com a cabeça na defensa de metal, abrindo o crânio como se parte uma melancia. Os miolos pulavam no asfalto entre os pingos da chuva que caía, e meu parceiro falou: “Olha só, Buenão, a energia que nosso cérebro tem.”

Vi tudo em silêncio, tirei meu quepe e rezei um Pai Nosso com muita fé, como meu parceiro me orientou, e senti que foi muito bom. Depois de tudo voltamos à base e terminamos nosso almoço numa boa. Na minha folga, voltei para Ribeirão Preto louco pra contar pro meu pai e ao vê-lo, falei: “Pai, fui batizado”. Contei a história, vi em seu rosto um leve sorriso misturado com orgulho, percebi no brilho de seus olhos.

Depois deste, vieram centenas; aqui mais para o interior as coisas eram muito difíceis, hoje é mamão com açúcar. Lem­bro de um que me arrepiou. Trabalhava certa noite na base de Brodowski, fomos eu e meu parceiro Gioria pra um acidente entre Batatais e o Rio Sapucaí.

Fiquei sozinho, Gioria foi em Batatais buscar o perito, eu no acostamento e o morto dentro do VW Gol.

Começou a trovejar e chover forte, e pra me abrigar entrei no banco de trás do Gol. O morto era gordo e estava no ban­co de passageiros. A chuva aumentou muito, trovões e raios riscavam o céu tenebroso, e de repente ouço um som tipo de um ronco bem forte e longo. Levei o maior susto, rezei ali um Pai Nosso e fiquei na minha. Depois de uma meia hora os amigos chegaram, o perito disse que poderia ser gases que tinham que sair por algum lugar. Tudo bem, disse eu, mas que assustei, assustei.

Dedico esta minha crônica ao policial Gioria que nos deixou faz pouco tempo.
Sexta conto mais.

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