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Nós, os rinocerontes

O atentado contra a vida do candidato a presidente da Re­pública, Jair Bolsonaro, no último dia 6 de setembro, em Juiz de Fora (MG), materializou o fenômeno de bestialização da sociedade brasileira que tem se agravado nos últimos tempos. Em grande medida, ao observar o comportamento nacional, inexoravelmente é traçado o paralelo com a obra “O rinoce­ronte”, de Eugène Ionesco, na qual as pessoas, aos poucos, brutalizam-se, até a total transformação no tipo de animal que dá nome ao livro.

O ataque mencionado não só atingiu fisicamente Bolsona­ro, como feriu a experiência do convívio democrático entre pessoas com visão de mundo divergentes e, em certa medida, expôs uma sociedade doente, que tem caracterizado a vida brasileira por um binarismo pobre em que o adversário é visto como inimigo. A democracia, realidade em que o dis­senso é ponto de partida e o consenso possível é o ponto de chegada, parece não ser algo plenamente arraigado no Brasil. Além da estrutura formal das instituições, é necessário que os valores democráticos plasmem as mais diversas relações sociais (familiares, profissionais, etc).

Quase tão preocupante quanto o fato ocorrido em Minas Gerais foi a reação observada em redes sociais ou em con­versas cotidianas. A relativização moral do atentado com base nas ideias atribuídas ao presidenciável é repugnante a qualquer comunidade que se pretenda civilizada. Por mais discutíveis que sejam, quaisquer posições de Bolsonaro não podem, de nenhum modo, ser vinculadas ao ataque físico por ele sofrido, estabelecendo uma relação de causa-conse­quência. Em última análise, tal visão, eticamente repugnante, consistiria em transformar a vítima em alguém com culpa parcial pela violência sofrida.

Em momentos como esse, é perceptível a atualidade do pensamento de Hannah Arendt ao tratar da banalidade do mal. Os conflitos que tomaram corpo nos últimos tempos em Roraima, estado em que tem havido entrada relevante de ve­nezuelanos em decorrência da crise humanitária experimen­tada pelo país vizinho, demonstraram como a possibilidade de animalização do convívio humano é algo latente. Basta que as instituições não funcionem adequadamente para que Hobbes possa, discretamente, sorrir.

Lamenta-se que o convívio no seio nacional tenha sido tomado pelo ressentimento nos últimos anos. Embora a existência de conflitos seja inevitável e, até certo ponto, dese­jável, pois representa a força motriz para mudanças sociais, a institucionalização dos desentendimentos é ponto essencial para o amadurecimento democrático. A despeito de quais­quer influências das redes sociais, estas representam apenas o instrumento utilizado pelos indivíduos, não sendo responsá­veis pelo acirramento dos ânimos. A irracionalidade está no comportamento das pessoas, não nos meios utilizados para a materialização das opiniões. O pensamento de Descartes pa­rece ter sido atualizado ultimamente em território nacional: “odeio, logo existo”.

É necessário muito cuidado para que não ocorra em nossa sociedade o fenômeno retratado na obra de Ionesco. Em algum momento, não haverá mais comunicação, somente barridos. A compreensão da complexidade da visão de mun­do exige humildade, lembrando-se que “os bons sujeitos dão bons rinocerontes” e que “às vezes, fazemos o mal sem querer, ou então deixamos que ele se propague”, como assevera a per­sonagem Bérenger. Há o perigo de que a brutalidade da con­vivência cotidiana seja vista com naturalidade. É preciso força de caráter para, em meio à “bestialização” que se nota nas discussões políticas, manter a humanidade e não se render.

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