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Nossos grandes boêmios

Tem dias que dano a pensar nos nossos grandes boêmios, sejam eles artistas ou não. Como transito no mundo musical é natural que me lembre mais de gente do meio. Participo de vários grupos nas redes sociais aqui de Ribeirão Preto e do Rio de Janeiro, recebo fotos desde a época de Noel Rosa e Pixinguinha até as de artistas atuais. Manuseando algumas antigas onde estão os que citei, tenho algumas com Cartola, Nelson Cavaquinho, Braguinha, Ataulfo Alves, Mario Lago, Ciro Monteiro e muitos outros.

Sinto que meu pensamento me transporta e de repente me vejo sentado em uma cadeira participando daquela roda de prosa. Numa das fotos estão Cartola, Nelson Cavaquinho e Adoniran Barbosa. Nunca vi foto mais boemia –como gostaria que o que desejei fosse real, quantas histórias poderia colher destes gênios da música brasileira.

Nas favelas, seja no morro ou não, sempre tinha um morador que improvisava um boteco, na época chamado de “vendinha”. O que mais se consumia lá era a nossa cachaça. Martinho da Vila, no samba composto por Paulinho da Aba – ganhou este apelido por causa da música “Na aba do meu chapéu” –, diz a seguinte frase: “Lá na vendinha do Zé do Caroço”…

As “vendinhas” eram instaladas em minúsculos barracos improvisados no meio do mor­ro. Lembro-me de ter lido, há mais de 30 anos, uma sensacional reportagem no Estadão em que uma leva de sambistas cariocas foi até Sampa fazer um show de samba genuinamente dos morros, aquele samba-raiz. Entre eles estava Cartola, que ainda bebia bem e naquela noite havia extrapolado no “birinaite”.

Não havia amanhecido e ele, num estado etílico muito elevado, foi dar um rolê pela rua. Procurava um bar pra continuar o embalo, e alguns amigos sambistas o acompanharam. De repente, ele parou em uma banca de jornal, daquelas bem antigas feitas de um material tipo latão – aqui em Ribeirão Preto tinha um monte delas, hoje são mais sofisticadas, vendem de tudo, até jornal.

Pois bem. Cartola batia naquela lata com o objetivo de açodar o dono para abrir a banca. Ora, o dono, naquele horário, estava em casa, dormindo. E o compositor de “O mundo é um moinho” e “As rosas não falam” insistia em bater naquela lata. Balbuciava qualquer coisa que ninguém entendia, até que apareceu o guarda noturno ali do pedaço e queria saber que muvuca era aquela.

Com muito custo conseguiu decifrar o que Cartola falava: queria que o sujeito abrisse a “vendinha” pois estava a fim de tomar mais algumas. No Morro da Mangueira tinha uma “vendinha” que com o tempo virou um barracão onde os compositores se reuniam pra beber e mostrar seus sambas novos. Era o famoso “Buraco Quente”. Um belo dia, apareceu um sam­bista querendo mostrar seu samba, Cartola e Dona Zica estavam só na escuta e o cara mandou ver. Mal ele soltou o gogó, Cartola olhou pra Dona Zica e falou: “Zica, este samba é meu e do Nelson Cavaquinho e este sujeito tá dizendo ser dele”.

O velho mangueirense saiu de lá uma fera, não via a hora de cruzar com Nelson e quando aconteceu, deu aquela enquadrada no parceiro: “Nelson, nunca quis ser seu parceiro porque você é muito enrolado. Dia desses, lá no ‘Buraco Quente’, um cara cantou nosso samba e disse pra todo mundo ouvir que era dele, como é que você me explica isso, cara?”

Nelson não esperava tal surpresa, mas respondeu a seu ex-parceiro o que lhe surgiu na mente: “Olha aqui, ô Cartola”, disse Nelson tentando dar uma de “sambarilove” no amigo. “Eu vendi a minha parte, agora você chega no cara e cobra a sua.” Nunca mais foram parceiros. Ah! Boemia deliciosa, eu aqui do alto de meus 70 anos sinto saudades da minha fase boêmia, era uma boemia sadia, com grandes e inesquecíveis amigos. Mas tudo muda, a vida voa e hoje joguei minha toalha.

Sexta conto mais.

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