Livro imperdível: “Lincoln no limbo”, de Georges Saunders, tradução de Jorio Dauster, editora Companhia das Letras. Não é romance histórico, cheio de datas, nomes e minúcias. Passa-se no dia 25 de fevereiro de 1862, quando Abraham Lincoln já morava na Casa Branca havia um ano. Plena Guerra da Secessão.
Willie, o filho de Lincoln de onze anos, morreu vitimado pelo tifo. À noite, o pai desesperado vai à sepultura e fica a carregar o filho no colo. Homem amar-gurado porque vê o país em guerra fratricida, mergulhado em sangue e por uma causa que ele considera abjeta: a escravidão.
Manter seres humanos, semelhantes providos de alma idêntica à dos senhores, como semoventes, “coisas” sem identidade, mas com preço. Quais mercadorias, desprovidos de dignidade. Era demais para uma alma sensível como a de Lincoln.
À chegada do pai para ninar o filho morto, os demais levados pela implacável ceifadeira animam-se: passam a considerar-se também dignos de afeição. O livro é um conjunto de citações, de notícias, de cogitações do autor, um badalado escritor americano que já ganhou os maiores prêmios na área: a MacArthur e Guggenheim Fellowships, o Folioe, o Man Booker Prize e também vendeu os direitos desse livro insólito e sedutor ao cinema.
Entrevistado a respeito, disse que a imagem de Lincoln cingindo o corpo da criança morta era algo como a “Pietà” de Michelangelo, que o atormentou durante mais de vinte anos. Resolveu escrever e levou quatro anos para terminar o livro.
É um romance? É uma novela? Um depoimento? Invenção ou quase memória? Ficção real? Seja o que for, é algo que mostra o embate de que tanto fugimos ou procuramos fugir: não queremos que as pessoas amadas morram. Isso levou o filósofo sul-africano David Benatar a propor o “antinatalismo”: decretar o fim absoluto e total da reprodução humana, com a finalidade de evitar sofrimento.
Já Saunders prefere acompanhar o britânico Julian Barnes, autor de “Nada a temer”. O fato de alguém morrer não faz desaparecer o amor que devotamos a essa pessoa. Ela não precisa deixar de existir para nós, a menos que a esqueçamos.
É o que Maria de Lourdes Teixeira, primeira mulher a ser eleita na Academia Paulista de Letras, costumava dizer: “Nossos mortos só morrem quando deixamos de amá-los! Enquanto os amamos, continuam a existir em nosso coração e em nossa memória”.