Passados 18 anos da publicação do genoma humano, o primeiro DNA completo a ser sequenciado, em 2000, já foram mapeados até o momento os genomas de 250 animais e 265 plantas – sem contar fungos e bactérias. Da família das gramíneas, à qual pertence a cana-de-açúcar, foram sequenciadas 33 espécies. Entre elas estão culturas fundamentais para o esteio da humanidade como arroz, cevada, milho, sorgo e trigo.
Mas, e a cana-de-açúcar? Onde está o seu genoma? Ninguém conseguiu sequenciá-lo ainda. Quando isto acontecer, imagine quais não serão os dividendos econômicos advindos de melhoramentos genéticos na planta? O que falta para sequenciar o DNA da cana-de-açúcar? Dezenas de laboratórios em todo o mundo vêm tentando há anos sequenciar o genoma da cana, mas a tarefa é por demais intrincada.
Existem duas estratégias para o sequenciamento. A do elefante e a da formiguinha. O método paquidérmico busca sequenciar o DNA da cana a partir do uso maciço de máquinas de sequenciamento, de onde saem sequências indecifráveis com trilhões de bases. Estas, por sua vez, são moídas e mastigadas pelas mais avançadas técnicas de bioinformática, consumindo ao longo do processo dezenas de milhares de horas de poder computacional. É uma estratégia cara, demanda grande quantidade de mão de obra e, até o momento, ainda não deu os resultados esperados.
Mas há outro método, mais econômico, para sequenciar o genoma da cana. Tal estratégia não busca decifrar o genoma completo da cana, mas identificar aqueles genes específicos cuja função está ligada aos aspectos do desenvolvimento da planta que se deseja selecionar. “Eu não preciso conhecer o genoma completo da cana-de-açúcar para, por exemplo, tentar identificar os genes responsáveis pela produção de açúcar na planta,” afirma a geneticista de plantas Anete Pereira de Souza, líder do Laboratório de Análise Genética Molecular no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Foi este o feito conquistado no início de 2018 por Souza e seus alunos Melina Mancini, Danilo Augusto Sforça e Claudio Cardoso-Silva. Trata-se do grupo pesquisadores a localizar – no meio do enorme palheiro genômica da cana – alguns dos prováveis genes relacionados à produção de açúcar no genoma de cana-de-açúcar. A descoberta, se confirmada, pode em tese levar a futuros saltos estupendos na produção de etanol e açúcar por hectare de cana plantado. Ou ainda elevar o poder calorífico do bagaço de cana produzido pela indústria sucroalcooleira, e que é queimado em usinas termoelétricas. Bagaço com maior poder calorífico significa maior produção de energia com menor quantidade de bagaço.
Cana: uma questão de interesse nacional
“Meu interesse nesta pesquisa não é sequenciar o genoma inteiro da cana,” diz Anete Pereira de Souza. “O que me interessa é sequenciar regiões importantes que codificam genes para a produção de açúcar, ou que possam conferir tolerância a pragas, resistência a doenças, ou que permitam plantar cana em diversos tipo de solo, com maior ou menor insolação, água, adubo, etc. O meu trabalho é voltado para os melhoristas da cana usarem nos seus programas de melhoramento.”
O Brasil é o maior interessado. Os números do setor sucroalcooleiro no país são muito impressionantes. Somos o maior produtor mundial de cana-de-açúcar. Na safra 2016/2017, foram colhidas 657,2 milhões de toneladas, quase o dobro da produção do segundo produtor, a índia. Na mesma safra foram produzidos 11 bilhões de litros de etanol, suficientes para abastecer 25 milhões de veículos flex, ou 60% da frota nacional. As consequências da descoberta dos genes para acúmulo de açúcar feita por Souza e sua equipe pode, num futuro não tão distante, aumentar estes números. Bastante.
Genoma muito mais complicado
O fato de até hoje nenhum laboratório ter conseguido mapear o genoma da cana-de-açúcar se deve à extrema complexidade de seu DNA. O genoma das plantas é reconhecidamente complexo – e o genoma da cana-de-açúcar é um dos mais complexos que existe. O genoma das plantas é maior e mais complexo do que o genoma de mamíferos, aves ou répteis e anfíbios (os peixes são uma exceção).
O DNA humano, por exemplo, é composto por 3,2 bilhões de pares de bases espalhadas por 23 pares de cromossomos, num total de 46 cromossomos. O genoma do trigo, por outro lado, possui 17 bilhões de bases divididos em 21 pares de cromossomos (total de 42). Já o genoma da cana-de-açúcar é composto por 10 bilhões de pares de bases, distribuídos entre 100 a 130 cromossomos. Como assim? São 100 ou são 130? Depende. Pode ser uma coisa ou outra, e qualquer uma no intervalo entre ambas.
A cana-de-açúcar cultivada hoje é uma espécie híbrida (Saccharumhybridum) criada a partir de cruzamentos de duas espécies do gênero Saccharum: Saccharumofficinarum e Saccharumspontaneum. A primeira delas, S. officinarum, é a cana-de-açúcar que foi originalmente domesticada na ilha da Nova Guiné há cerca de 8 mil anos e passou a ser cultivada na Índia há 3 mil anos. Foi esta a espécie cultivada nos engenhos de cana-de-açúcar do Brasil colonial e no resto do mundo.
Mais de três séculos de cruzamentos consanguíneos levaram à perda de diversidade genética da planta. Isto fez com que, em meados do século 19, a produção das lavouras de cana ao redor do mundo começassem a declinar. Ao mesmo tempo, a perda de vigor da planta abriu as portas para o ataque de doenças e pragas contra as quais a cana perdera resistência.
Para recuperar a produção mundial, era premente fazer a cana recuperar defesas contra os agentes bióticos que a atacavam. A planta precisava recuperar o vigor perdido. A solução foi cruzar a cana Saccharumofficinarum com outra planta do mesmo gênero, o capim Saccharumspontaneum.
“S. spontaneum não é cana. É um capim. Não tem açúcar, mas é resistente a doenças e pragas, além de rico em fibras,” explica ageneticista Anete Pereira de Souza. “Deu um bom casamento. O híbrido resultante, Saccharumhybridum, produz muito açúcar e tem resistência às doenças e pragas do capim.”
Para chegar em S. hybridum, primeiramente cruzou-se a cana S. officinarum com o capim S. spontaneum. Daí se obteve um primeiro híbrido, que era resistente a doenças e pragas, porém produzia pouco açúcar. Para elevar o teor de açúcar na planta, foram feitas diversos cruzamentos sucessivos dos híbridos com a cana S. officinarum. “Foi o homem quem criou a cana híbrida que plantamos hoje em dia: ela é forte e tem bastante açúcar,” ressalta Souza.
Se, por um lado, os cruzamentos sucessivos resultaram num híbrido de qualidade, por outro criou-se uma planta cujo genoma é uma salada genômica quase indecifrável. A complexidade genômica de Saccharum é a tendência da cana para a poliploidia, ou seja, a multiplicação de cromossomos. A maioria dos organismos, incluindo humanos, tem um genoma diplóide, carregando dois conjuntos completos de cromossomos, um herdado do pai e o outro da mãe.
No entanto, o gênero Saccharum é poliplóide, ou seja, carrega mais de duas cópias de cada cromossomo. No caso específico de S. officinarum, a espécie é octaplóide. Durante o cruzamento, os 10 cromossomos da planta são multiplicados por oito, ou seja, a planta recebe de cada um dos pais não uma, mas quatro cópias de cada cromossomo, totalizando um genoma com 80 cromossomos.
Para complicar ainda mais, na cana-de-açúcar híbrida o número de cromossomos não só é ainda maior que 80 (devido à inserção do DNA do capim S. spontaneum) como – e aí talvez resida o maior complicador de todos – o total de cópias de cada cromossomo recebido do pai e da mãe não é fixo, mas varia de oito até 14 cópias. Daí que o número de cromossomos não é o mesmo para as diversas variedades da cana híbrida. Existem indivíduos que podem ter 100 cromossomos, enquanto outros têm 112, 120, ou até mesmo 130 cromossomos. Nem por isto eles deixam de pertencer à mesma espécie.
O desafio dos pesquisadores que tentam sequenciar e mapear o genoma da cana-de-açúcar é decifrar, em meio a bilhões de repetições e duplicações desse genoma, quais são as sequências de bases que estavam originalmente em S. spontaneum e S. officinarum, assim como identificar quais são as suas posições no gigantesco genoma atual. Dá pra compreender o tamanho do problema?
“Para fazer o melhoramento da cana-de-açúcar é preciso entender a genética da planta. Esta compreensão passa pelo sequenciamento,” diz Souza. “A complexidade do genoma da cana têm impedido seu sequenciamento. A gente até consegue obter as sequências de genes. Têm máquinas que fazem isso. O problema está na hora de juntar as peças do quebra-cabeças. A gente não consegue juntar as sequências na ordem correta. Não sabe em qual cromossomo elas ficam. Nem consegue identificar genes específicos, pois há 12 tipos para cada gene.”
Mas para tudo sempre há um jeito. Em vez de tentar sequenciar milhões de bases ao mesmo tempo, Anete Pereira de Souza e seus alunos optaram por tentar identificar genes ou conjuntos de genes cujas funções específicas interessam ao melhoramento da cana. Como identificá-los se há múltiplos tipos de cada gene? A resposta é, por similaridade, comparando genes da cana com genes similares – cujas funções são conhecidas – no genoma sequenciado do sorgo (Sorghum bicolor).
“O mundo todo quer sequenciar a cana-de-açúcar. Desenvolvemos uma estratégia para o sequenciamento de regiões específicas do genoma da cana por similaridades com o genoma do sorgo,” revela Souza. O estudo acaba de ser publicado na revista Frontiers in Plant Science.
Os próximos passos da pesquisa incluem fechar as três lacunas para obter uma sequência completa. Outro aspecto importantíssimo que falta confirmar é se a função dos 253 genes encontrados na cana é, de fato, produzir e acumular açúcar.