Nicola Tornatore
A série Túnel do Tempo vai contar hoje a trajetória de vida de um dos maiores beneméritos da história de Ribeirão Preto. O protagonista desta edição era tão querido pela população que motivou um episódio insólito – e que nunca mais se repetiu. Centenas de moradores fretaram um trem e foram até a vizinha São José do Rio Pardo para promover uma manifestação de desagravo – a favor do benemérito e contra o bispo dom Alberto José Gonçalves, que o removeu a contragosto.
Ribeirão Preto teve, em seus mais de 160 anos de história, inúmeros sacerdotes católicos que aqui desempenharam suas funções e deixaram um legado de realizações e saudade. Entre muitos, porém, padre Euclides Gomes Carneiro (1879-1945) merece destaque. Nos quase 15 anos (de 1902 a 1915) em que morou na cidade, padre Euclides ganhou notoriedade como um incansável protetor dos pobres e desvalidos. No rol de suas obras aparece a reestruturação da Santa Casa de Misricórdia, a construção da Catedral Metropolitana de São Sebastião, a fundação da Legião Brasileira e do “Asylo dos Inválidos” (hoje Lar Padre Euclides) e muitas outras ações. Mais que reverenciado, era genuinamente adorado pelos moradores.
Por isso, caiu como uma bomba a notícia de sua transferência para São José do Rio Pardo, tornada pública em 1º de junho de 1915 pela imprensa local – no “português” da época: “É com grande magua que hoje communicamos aos nossos leitores a remoção do padre Euclides Carneiro, cura da Cathedral, para a parochia de S. José do Rio Pardo, onde vae exercer as funcções de vigario”. A medida tomada pelo bispo Dom Alberto José Gonçalves surpreendeu a todos a tal ponto que essa primeira notícia dava a transferência como provisória: “Felizmente que a sua remoção desta cidade tem caracter provisorio (…).”
Não tinha caráter provisório. Oficialmente, na condição de sacerdote, nunca mais padre Euclides retornou a Ribeirão Preto. Mas ele driblou a burocracia da Igreja Católica e permaneceu vivo e presente no coração da comunidade que o venerava – continuou visitando a cidade frequentemente e comandou, de longe, a fundação do sonhado “asylo da mendicidade”.
Comunidade se mobiliza – A informação de sua transferência de Ribeirão Preto foi publicada em 1º de junho de 1915, uma terça-feira. Na noite da quinta-feira, dia 3, foi realizada uma reunião extraordinária na sede da Sociedade Legião Brasileira, que padre Euclides tinha fundado e presidia. Em meio de calorosos debates sobre as razões da remoção, o grande orador João Pedro da Veiga Miranda (que posteriormente seria ministro da Marinha – o primeiro e único civil a ocupar o posto até hoje) encaminhou uma indicação, aprovando-se “uma manifestação do grande apreço que Ribeirão Preto ao mesmo tributa”.
No texto dessa indicação, a remoção foi explicada como “por motivos de moléstia”. A comissão montada para organizar a manifestação incluia Veiga Miranda (nascido em Campanha/MG em 1881 e falecido em Ribeirão Preto em 1936) e o prefeito Macedo Bittencourt, além dos coronéis Gabriel Junqueira e Saturnino de Carvalho.
Uma semana depois, tudo estava encaminhado. Em 10 de junho, a imprensa noticiou o fretamento de um trem especial para levar centenas de moradores até São José do Rio Pardo, no domingo, 13 de junho. O texto trazia também outras informações, como a de que a “Sociedade José do Patrocínio”, dos “homens de cor”, havia aderido à iniciativa, e a de que estava à disposição de todos, na sede da Legião Brasileira, para ser assinada, a “mensagem que vae ser dirigida ao benemerito sacerdote em signal de reconhecimento pelos beneficios que praticou nesta cidade”.
A movimentação era tanta que na sexta-feira, 11 de junho, a imprensa avisou: “(…) só será permittido ingresso no trem às pessoas que se apresentarem munidas dos respectivos convites, os quaes são pessoais e intransferiveis”. Na edição de sábado, 12 de junho, véspera da viagem, a imprensa informava que o trem especial “parte impreterivelmente amanhã as 6 horas em ponto”, que “o almoço será em S. José do Rio Pardo, estando estabelecidos preços módicos pelos hoteis, devendo cada excursionista pagar as suas despezas”, e que “hoje ficará em exposição na vitrine da Casa Andrade Baptista a luxuosa pasta de marroquim, na qual será acondicionada a mensagem (escrita em pergaminho animal). A pasta, de severo gosto, é encrustada de ouro, contendo a um dos cantos as iniciais E. C.”.
No domingo, foi veiculada a notícia de que “o maestro José Delfino (da banda Filhos de Euterpe) compoz uma linda marcha que denominou Padre Euclides, a qual será hoje executada em S. José do Rio Pardo pela primeira vez” e que “a banda Filhos de Euterpe compõe-se de 36 figuras e trajará o fardamento de gala”.
Na terça-feira, 15 de junho, a imprensa publicou o relato sobre a emocionante viagem – quando a multidão chegou na casa de padre Euclides, ele caiu no choro e não conseguiu discursar em agradecimento. Menos de um mês depois, em 14 de agosto, data do aniversário de nascimento do sacerdote, um jornal local dedicou toda a primeira página a um único assunto, reproduzindo parte dos mais de 150 telegramas que o venerado sacerdote receberia naquela data de admiradores de Ribeirão Preto (incluindo um do Commercial Foot Ball Club) e uma mensagem para padre Euclides, redigida e lida por Veiga Miranda por ocasião da viagem a São José do Rio Pardo.
Era inveja do bispo ou intriga familiar?
Nunca ficou claro o porquê da remoção de padre Euclides de Ribeirão Preto para São José do Rio Pardo. Em uma tese de mestrado sobre o Lar Padre Euclides – “A Assistência ao Idoso no Lar Padre Euclides de Ribeirão Preto (SP) nas décadas de 1910 a 1950, Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), ligada à Universidade de São Paulo (USP), porém, a autora Gabriela Burali, sem pretender esclarecer de vez o caso, dá algumas pistas.
“Uma carta de Dom Alberto (José Gonçalves, bispo de Ribeirão Preto) destinada ao arcebispo de São Paulo e escrita em 8 de junho de 1915 relata possíveis problemas que padre Euclides estaria vivenciando com membros da própria família, que teriam ido ‘ás casas de famílias da cidade com o fim exclusivo de desmoralizá-lo’”, registra a tese. A autora aborda ainda outras possíveis versões para as seguidas remoções de padre Euclides por parte de dom Alberto – afinal, anos depois de ter sido retirado de Ribeirão Preto (1915), o sacerdote seria transferido, novamente a contragosto, de São José do Rio Pardo (1919), onde a população também se mobilizou para reverter, sem sucesso, a decisão do bispo:
“As constantes remoções de Padre Euclides por D. Alberto José Gonçalves foram motivo de grandes polêmicas entre as populações das cidades onde ele viveu. Sem ter totalmente esclarecidos os motivos de tais transferências, que variavam comportamentos inadequados do padre e conflitos familiares, conforme D. Alberto, até inveja deste em relação a padre Euclides, conforme ponto de vista da população, o povo se manifestava, reclamando a permanência do padre, sem êxito (…)”, explica Gabriela Burali.
Desagravo levou 300 pessoas a Rio Pardo
Trecho de relato de participante da excursão a São José do Rio Pardo em junho de 1950 (mantida a grafia da época): “Excedeu a toda a espectativa a manifestação de apreço que a população agradecida de Ribei-rão Preto rendeu ante hontem em S. José do Rio Pardo ao rev. Padre Euclides Carneiro, ora vigario daquella parochia. O trem especial que daqui partiu as 6 horas conduziu cerca de 300 pessoas de representação social, entre as quaes figuravam magistrados, membros da Camara Municipal, diversas autoridades, advogados, medicos, engenheiros, professores, comerciantes, lavradores, industriaes, jornalistas, funccionarios publicos e delegações de sociedades, que para alli se dirigiram, animadas por um nobilissimo sentimento de gratidão, a testemunhar ao abnegado sacerdote todo o seu immenso reconhecimento pelos benefícios que prodigamente semeou nesta terra que se ufana em o ter acolhido por muitos annos”.
A vida e a morte de padre Euclides
Euclides Gomes Carneiro, filho do coronel José Gomes Vieira e Silva e dona Cândida Santiago Carneiro e Silva, nasceu em 14 de agosto de 1879, em Itajubá (MG). Iniciou os estudos em Lorena e frequentou o Seminário Episcopal de Mariana, sendo ordenado padre aos 22 anos, em abril de 1901. Designado coadjutor de Monsenhor Antônio de Siqueira para a paróquia de Ribeirão Preto, aqui chegou em dezembro de 1902.
De imediato assumiu a direção da Santa Casa (fundada em 1896), então um “conjunto precário de enfermarias abandonadas”. Em 3 de maio de 1903 fundou a Associação dos Catequistas Voluntários, que no ano seguinte passou a ser denominada Sociedade Legião Brasileira de Civismo e Cultura. A sede da entidade, um prédio de dois pavimentos, foi construída entre 1905 e 1917 na esquina das ruas São Sebastião e Visconde de Inhaúma (anos mais tarde, essa sede foi demolida e no mesmo local erguido o atual Edifício Padre Euclides).
Em fevereiro de 1904, passou a atuar na comissão de obras da Catedral Metropolitana de São Sebastião. Em 1912, fundou uma escola profissionalizante denominada Escola de Artes e Ofícios e depois Centro Operário São Benedito. A partir de 1909, começou a lutar para viabilizar a fundação de um “asylo de mendicidade” – a primeira ideia, de instalá-lo no desativado Hospital de Isolamento, foi descartada devido a focos de mosquito transmissor da malária naquelas imediações (atual Alto do Ipiranga). Mesmo removido de Ribeirão Preto em 1915, padre Euclides continuou a trabalhar pelo asilo (inaugurado em 1920).
Em junho de 1915, aos 36 anos, padre Euclides foi transferido para São José do Rio Pardo. Lá, em menos de cinco anos, fundou um asilo para mendigos (hoje Lar Padre Euclides), reformou a catedral local e inaugurou a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes. Em junho de 1919, foi removido por dom Alberto de São José do Rio Pardo. No ano seguinte, 1920, foi mandado para Botucatu, onde em 1922 fundou o “asylo de mendicidade”. Em 1925 foi transferido para Piraju (SP). Em 1932, padre Euclides estava morando no Rio de Janeiro em em 1939, era capelão das Carmelitas em Todos os Santos (RJ). No início dos anos 1940, padre Euclides permaneceu internado no sanatório de São José dos Campos para tratamento de tuberculose.
Morreu em 26 de fevereiro de 1945, aos 65 anos, no Convento das Carmelitas. Em 27 de fevereiro de 1946, em comemoração ao primeiro aniversário de falecimento, um monumento criado por Alberto Crosera foi inaugurado no canteiro central da avenida da Saudade, nos Campos Elíseos, defronte ao asilo. Anos depois, quando a avenida foi reformada e o canteiro central retirado, o monumento foi transferido para a praça Santo Antonio, onde ficou por pouco tempo, sendo instalado, de forma definitiva, no jardim do Asilo Padre Euclides, junto à Capela de Nossa Senhora Aparecida.
Em 30 de abril de 1950, os restos mortais de padre Euclides, que estavam em um cemitério no Rio de Janeiro, foram transladados para a Capela de Nossa Senhora Aparecida, no asilo que tem o nome de seu fundador. Uma placa de bronze, junto à urna mortuária, traz os seguintes dizeres: “Aqui jazem os restos mortais do Padre Euclides Gomes Carneiro, benemérito fundador deste Asilo. Amou ao próximo mais do que a si mesmo, propagou a fé católica, realizou obra ampla de caridade e assistência. Tornou-se credor da veneração do povo. Orai por ele”.