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O quiproquó do trânsito em julgado

O cientista politico Wanderley Guilherme dos Santos situa o inicio da crise institucional do Brasil, relativamente à aplicação das leis, com a declaração do então Ministro Joaquim Barbosa, segundo a qual “A Constituição é o que o Supremo Tribunal diz que ela é”.

Com essa o Ministro inadvertidamente revelou sua aptidão em aprisionar, em sua vontade, a vontade de deus, fazendo-a sua. Se não é a vontade da lei que deve prevalecer na distribuição da justiça, nos estados da moderna constitucionalização, reserva-se a um punhado de pessoas, togadas, essa missão perversamente distorcida.

A vontade, no governo das leis, é a vontade da lei, não é a vontade pessoal de quem a aplica. Evidente, que a captura da vontade da lei está sob a responsabilidade da pessoa que viveu, vive e viverá sob o manto e a pressão da realidade da vida. Mas, o esforço honesto é ir em direção à vontade da lei para encaixar nela o ato-fato exigente de sua aplicação.

A reflexão, ora feita, é sugerida pelo principio constitucional, que autoriza a prisão somente após o transito em julgado da sentença condenatória.

O quiproquó nacional sobre tal questão foi criado porque a clareza de principio, que dispensa interpretação alguma, foi interpretado. Se a interpretação adotada o revoga gera-se o que gerou – um quiproquó, “erro que significa tomar uma coisa por outra”. Tal interpretação tem uma justificativa empírica que repercute na indignação coletiva contra a corrupção, que merece a indignação não-atiçada de todos.

A justificativa é quanto à demora dos processos nos tribunais, imputando-se essa demora ao numero de recursos em favor do réu, jamais se falando da qualidade das sentenças recorridas, jamais imputando tal responsabilidade à lerdeza do Poder Judiciário.

A ilustração dessa realidade pode ser dada por habeas-corpus esperando, há mais de ano, seu julgamento em Instância Superior. Habeas-corpus, que tem a prioridade de julgamento em qualquer tribunal. Ainda, pode-se se referir a um outro exemplo, já que se revoga empiricamente um principio constitucional: há mais de três embargos declaratórios pedindo simplesmente a aplicação de lei escrita que sumula do tribunal superior a repete.

Antes de 1988, entrou em vigência a lei nº 59941/73, conhecida como Lei Fleury, que alterou uma regra normativa do Código de Processo Penal. Essa Lei foi encomendada, no período da ditadura, para proteger da prisão o delegado Sergio Fernando Paranhos Fleury (1933/1979),notório torturador. Literalmente, ela garantia ao réu primário e de bons antecedentes o direito de responder o processo em liberdade.

No entanto, essa garantia se converteu em principio constitucional. Essa inclusão ocorreu pela Assembleia Nacional Constituinte, a mais democrática da história politico-institucional do Brasil. Ela fez a revolução de tirar o protagonismo histórico do Estado para substitui-lo pelo da dignidade da pessoa. E essa garantia recebeu a expressão literal, no seu artigo 5º LVII: “Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença condenatória”.

Portanto, era uma regra do Código de Processo Penal, que foi alçada à garantia constitucional.
Um princípio não pode ser revogado na prática, porque um jornalista-homicida e condenado está solto, em virtude de seus recursos, ou porque a indignação popular, atiçada por homens da lei, quer que tal politico seja condenado, até “porque a doutrina o condena”, substituindo, até, provas por suposições.

Um princípio contém em si a força irradiadora para todo o sistema jurídico de um país. Ele não pode ser limitado, ele não pode sofrer restrição, salvo se a própria fonte que o elegeu, que foi a Assembleia Nacional Constituinte, consagrasse uma regra de limitação.

Qual a diferença, entre o Brasil e as centenas de nações, que prendem o condenado já na primeira ou na segunda condenação?

A diferença é a Constituição. Na nossa Constituição está escrito o principio que deve ser aplicado com seu conteúdo pleno, porque “Juiz não é Deus”, como estampa o titulodo livro do jurista Lenio Luiz Strech, e ele tem o dever de capturar a vontade da lei para aplica-la no ato-fato que julga.

E, invoca-se, ainda, como ilustração dessa inteireza plena de um principio constitucional, o artigo do prof. Celso Lafer “Incerteza Jurídica”, veiculado no jornal O Estado de São Paulo de 18 de março último, que registra:

“Existem parâmetros para a latitude da interpretação. São os provenientes do direito posto e positivado, da qual provém a dogmática jurídica. Sua função no processo decisório da aplicação do Direito, como explica Tercio Sampaio Ferraz Jr. é a de impor o principio da inegabilidade dos pontos de partida das séries argumentativas, inerentes à experiência jurídica”. Diz ele, ainda, “…a inegabilidade dos pontos de partida estipulados na leiexercem uma função de contenção da incerteza jurídica e da incerteza jurisdicional, que é uma das suas consequências”.

Talvez, seja por isso, que o Ministro Ayres Brito, que um dia criticou a Constituição de 1988, atualmente reviu sua posição, para não só defende-la, como para acreditar que a crise atual (o quiproquó) deve ser resolvidacom ela.

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