Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão
“Vou tomar meus ‘uisquezinhos’ – com parcimônia -, comer pizza caseira e bolo. Vai ser um festejo bom, dentro do possível e da tristeza que envolve o mundo no momento. Vou ficar quietinha, igual ao rei (Roberto Carlos) e à rainha Elizabeth. É a rainha, o rei e eu (risos)”, diz Nana Caymmi, sobre a comemoração das oito décadas de vida.
A cantora, como deve ser, está em casa, em seu apartamento no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. A única coisa que a chateia no momento é o fato de seu último álbum, Nana, Tom, Vinicius, lançado em julho do ano passado pelo Selo Sesc, ainda não ter saído em edição física.
“Ficou só na internet. Estou arrasada”, lamenta. O disco marcaria seu retorno aos palcos, depois de quase cinco anos de afastamento.
Para o estúdio, local que ela confessa gostar mais que o palco, pretende voltar assim que a pandemia der uma trégua. Um dos projetos é gravar as canções da parceria de Dori Caymmi, seu irmão, e Nelson Motta. São canções que eles fizeram nos anos 1960 e 1970, entre elas, Saveiros, com a qual Nana venceu o 1º Festival Internacional da Canção Popular em 1966, e O Cantador. Se tudo der certo, o disco sairá no ano que vem.
“É uma ideia meio amalucada da Nana. Eu pirei, óbvio. É um sonho para qualquer compositor ter um disco inteiro de suas canções na voz dela. Vai ficar lindo. Será ótimo para recuperar músicas nossas que ficaram perdidas no tempo”, diz Motta.
O produtor e compositor, inclusive, escreveu uma letra inédita para uma delas, que era só instrumental. Andréa, que fez parte trilha sonora da telenovela Véu de Noiva, exibida em 1969, gravada com vocalizes da cantora Joyce, virou Valsa de Verão.
A balada Minha Doce Namorada que, na época, acompanhou o nome da novela homônima, agora, por insistência de Motta, chama-se Um Dia de Sol. “É uma ótima música que tinha um título ridículo. Só por ela já valerá o disco”, diz o compositor.
Nana teve Dori por perto por quase toda sua carreira. Em disco e em estúdio. Foi dele a ideia de dar a ela a canção Saveiros. Nana, que lançou seu primeiro disco solo em 1965, voltava da Venezuela depois do fim do casamento de cinco anos com o médico Gilberto Paoli. Nos braços, as filhas Stella e Denise. Na barriga, o caçula João Gilberto.
“Foi quando apostei em mim. Estava na lona. Meus pais eram contra a minha separação. Dori me deu o sapato para caminhar. Ou melhor, uma bota, que até hoje está comigo. Com ela, posso pisar em qualquer canto, na lama, no charco, que tenho firmeza”, diz Nana.
Esse terreno que Nana teve de botar os dois pés já estava cercado pela chamada MPB, invadido pelo bando da Jovem Guarda e, um pouco mais tarde, seria semeado com o Tropicalismo. Ela seguia em rota paralela, sem querer montar acampamento em nenhum deles. “Nunca prestei atenção na música dos outros. Nunca fui mulher de moda. Eu sou samba-canção. Uma cantora de música popular brasileira, nascida na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, diz.
O segundo disco veio apenas em 1973, por uma gravadora argentina, a Trova. O pianista João Donato e o guitarrista Hélio Delmiro estiveram à frente dos arranjos. Se havia uma trupe que Nana seguia, era a dos músicos, arranjadores e produtores de destaque nos anos 1970 e 1980. Tom Jobim, Toninho Horta, Novelli, Nelson Ângelo, Ivan Lins, Robertinho Silva, Luiz Alves e Ronaldo Bastos eram nomes constantes nas fichas técnicas de seus discos.
Em 1983, um encontro com o pianista Cesar Camargo Mariano produziu uma de suas obras-primas, o disco Voz e Suor. Apenas ela e os acordes tirados do piano pelo músico. O título veio da música de mesmo nome que abre o álbum e que tem assinatura de Sueli Costa e Abel Silva.
“Estávamos eu, Nana e Tom na churrascaria Plataforma. Nana buscando um título para o disco e aí escolheu esse. Sempre foi uma honra ser gravada por ela”, conta Sueli.
Apesar do reconhecimento da crítica e dos músicos, Nana era considerada, até mesmo pelas gravadoras, como uma cantora de elite. Ela diz que logo percebeu que esse rótulo não lhe cabia quando, em 1977, ao participar do Projeto Seis e Meia, ao lado de Ivan Lins, viu o público que havia ficado do lado de fora do teatro quase quebrar as portas para tentar entrar. Foi preciso bisar a sessão naquele dia.
Trilha sonora
As gravações de Nana também sempre foram escolhidas para trilhas de televisão. Se Queres Saber, de Peterpan, do disco de 1977, foi a abertura da minissérie Quem Ama Não Mata, de 1982. Anos antes, o registro havia impressionado Elis Regina, cantora que, nos anos 1960, segundo Nana, a vetou do seu programa O Fino da Bossa. Ao ouvir a canção no rádio, Elis disse, segundo relato do jornalista Eustaquio Trindade Neto: “eu adoro a voz dessa mulher”.
Foi justamente uma canção na TV que deu a Nana seu primeiro e único disco de ouro (150 mil cópias vendidas), em 1998. A canção Resposta ao Tempo, parceria do pianista Cristóvão Bastos e de Aldir Blanc, escolhida para ser tema de abertura da minissérie Hilda Furacão, escrita por Glória Perez.
“Eu mostrei a melodia para a Nana e ela gostou muito. Quando a letra do Aldir chegou, todos ficaram emocionados no estúdio. Nos shows, eu tocava a introdução e parecia apresentação de música pop. Era aquele alvoroço na plateia”, conta Bastos.
A versão de Nana para a história é mais dramática. “Foi tirada a sangue. Eu estava com o disco para fechar e a letra não chegava. Um dia, liguei para o Aldir, que não atendia telefone nem a tapa e deixei um recado pedindo por favor que ele fizesse a letra. Dei um daqueles meus ataques. Quem me conhece sabe”, conta, aos risos.
O produtor de Resposta ao Tempo é José Milton, que está à frente dos discos da cantora desde 1994, quando ele lhe ofereceu o projeto A Noite do Meu Bem – As Canções de Dolores Duran. De lá para cá, produziu 13 álbuns de Nana, incluindo Sangre de Mi Alma, só com boleros cantados em espanhol, e Para Caymmi – De Nana, Dori e Danilo, que levou o Grammy Latino de 2004. “Nana sabe o que quer. Ela entra no estúdio com o copo de água dela, senta, e faz, no máximo, dois ou três takes de cada música. É amiga de todos os músicos”, conta o produtor.
Modesta, Nana diz não saber se sua vida dá um livro. Conta que sua filha Stella, que escreveu a biografia do avô, Dorival Caymmi: o Mar e o Tempo, por enquanto, não se interessou em contar sua história. De álbuns, além do que trará as parcerias de Dori e Nelson Motta, diz que gostaria de fazer um com canções que nunca gravou de Milton Nascimento, Beto Guedes, Tom Jobim, Sueli Costa e Danilo, o irmão mais novo. “Se eu não gravei, é inédita para mim”, diz.
Nana sabe que, nesses mais de 60 anos de carreira – se for considerada a sua primeira gravação, Acalanto, ao lado do pai, Dorival -, a música, alheia a qualquer projeto, segue seus próprios caminhos. “Ela acontece, assim como o amor. É como uma nascente, ela corre. Para quem consegue molhar o rosto nessa água límpida, como eu faço quando estou gravando, é um delírio”, diz.
10 GRAVAÇÕES NA VOZ DE NANA
– Ponta de Areia (1975)
O clássico de Milton Nascimento e Fernando Brant fala de Minas Gerais e Bahia, o ponto de encontro dos ascendentes de Nana. Bituca faz participação especial nos vocais, fazendo um contracanto para a voz da cantora.
– Milagre (1977)
O samba foi um presente de Dorival Caymmi para a filha, que canta com Nana na faixa. Os arranjos ficaram a cargo de Dori e o piano é tocado por João Donato. Um verdadeiro encontro de craques.
– Contrato de Separação (1979)
Uma das músicas mais contundentes da parceria de Dominguinhos e Anastácia foi entregue para Nana lançar. O próprio músico tocou acordeão na gravação.
– Sentinela (1980)
Gravação fora da discografia de Nana, a canção está no disco homônimo de Milton Nascimento. Assinada em parceria com Fernando Brant, a música, um cântico de resistência à ditadura, foi gravada em uma capela do Rio de Janeiro e teve a participação de um coro de monges beneditinos.
– Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço (1981)
Nome mais ligado ao samba-canção, ela caiu – muito bem – no samba de Dona Ivone Lara e Hermínio Bello de Carvalho. No piano, mais uma vez, o amigo João Donato.
– Derradeira Primavera (1985)
A canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes contou com arranjo e regência de orquestra do compositor francês Michel Legrand. A faixa está no disco Chora Brasileira, um dos mais cults da discografia de Nana.
– Por Causa de Você (1994)
Emocionante encontro do piano de Tom Jobim com a voz de Nana. Apenas os dois nesta faixa que o maestro compôs com Dolores Duran. Nana e Tom foram amigos na música e nos passeios matinais pelo Leblon.
– Doralinda (1998)
A música de João Donato e Cazuza faz parte do álbum Resposta ao Tempo, o mais bem sucedido de sua carreira, e conta com a participação do cantor Emílio Santiago, a quem Nana considerava um afilhado.
– Festa de Rua (2002)
Em O Mar e o Tempo, álbum dedicado às canções do pai, Nana reuniu filhas, netas e sobrinhas no coro da faixa que abre o disco. O irmão mais novo, Danilo, toca flautas de madeira.
– Contradições (2009)
Parceria de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, os mesmos de Resposta ao Tempo, é um dos grandes momentos do disco Sem Poupar Coração, quando a cantora voltou a gravar composições inéditas. Daquelas de emocionar os ouvintes, como Nana gosta.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.